sábado, 20 de março de 2010

Carmen Feito diz poema de Fernanda de Castro



Alegria

De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho...,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura

duma nova amargura...
De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade...
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte...
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.

Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.

Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir
o tédio,

Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a
um vício.

Alegria!
Alegria!
Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!

Berta Singerman diz poema de Fernanda de Castro



Poema da Maternidade

Pode lá ser! Não quero, não consinto!
Tudo em mim se revolta: a carne, o instinto,
A minha mocidade, o meu amor,
A minha vida em flor!

É mentira! É mentira!
Se o meu filho respira,
Se o meu corpo consente,
Covardemente,
A minh'alma não quer!
Eu não quero ser mãe! Basta-me ser mulher!
Basta-me ser feliz!
E o meu instinto diz:
— «Acabou-se! Acabou-se! Agora renuncia:
Começa a tua noite: acabou-se o teu dia!
Tens vinte anos? Embora! A tua mocidade
Perdeu chama e calor, perdeu a própria idade.
Resigna-te. És mulher! Foi Deus que assim o quis.
Já foste flor: agora és só raiz.» —
Não pode ser! É injusta a minha sorte!
Não quero dar vida a quem me traz a morte!
O meu destino há-de ter outro brilho!
Vida, quero viver! E morro, morro...

Filho!
Pode lá ser, Jesus! Eu não mereço tanto!
Filho da minha dor, eu já não choro — canto!
Filho que Deus me deu! Porquê, Senhor,
Há só uma palavra: Amor, Amor, Amor?!
Dai-me outra voz que nunca tenha dito
Coisas más, coisas vis... e que saiba a infinito...
Dai-me outro coração, mais puro, mais profundo,
Que o meu já se quebrou de encontro ao mundo...
Dai-me outro olhar que nunca tenha olhado,
Que não tenha presente nem passado...
Dai-me outras mãos, que as minhas já tocaram
A vida e a morte... o bem e o mal... e já pecaram...

Filho, por que seria? Ao vires para mim,
Mudaste num jardim
Os espinhos da minha carne triste...
E como conseguiste
Dar uma cor de sol às horas mais sombrias?

Meu menino, dorme, dorme,
E deixa-me cantar
Para afastar
A vida, um papão enorme...
Meu menino, dorme, dorme...

Vamos agora brincar...
Que brinquedo, meu menino?
O mar, o céu, esta rua?
Já te dei o meu destino,
Posso bem dar-te a Lua.
Toma um navio, um cavalo,
Toma agora o mar sem fundo...
Ainda achas pouco? Deixá-lo!
Se quiseres, dou-te o mundo!
Mas por que não vens brincar?
Por que preferes chorar?
Jesus! Que tem o meu filho?
Que vida estranha no brilho
Do seu olhar?
Uma vida inquieta e obscura
Anda a queimar-lhe a frescura ...
Ainda hoje, meu filho, não sorriste
E o teu olhar é triste...
Cheiras a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
O seu hálito queima, o seu olhar escalda...
Ele que tinha um olhar de estrela ou de esmeralda
E um perfume de flor,
Agora tem na boca um amargo sabor
E cheira a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
Tirai-me dos olhos toda a luz!
Livrai-me da blasfémia... Deus! Jesus!
Pois se o meu filho morre, se agoniza,
Por que há flores no chão que ele não pisa?
Se num coval o hei-de pôr, de rastros,
Por que estarão tão altos os astros?
Senhor, eu sou culpada… Eu sei o que é o pecado…
Mas ele, meu Jesus, ainda não tem passado...
Para mim, não há mal que não aceite,
Mas ele, ainda tão perto do teu céu!
A sua vida era beber-me leite...
No olhar com que me olhava tinha um véu
De neblinas, de névoas de outras vidas...
Às vezes, tinha as pálpebras descidas
E punha-se a chorar no meu regaço
Com saudades, talvez, do céu, do espaço...
O meu filho tem febre!
Por que andam a cantar pelos caminhos?
Por que há berços e ninhos?
Vida! O meu filho era belo,
O meu filho era forte!
Vida, que mãe és tu? Defende-me da morte!
Vida! Vida! Vida!

Louvado seja Deus! A morte foi-se embora!
Já não tens febre agora!
Louvado seja Deus! O meu menino vive,
Este menino, o meu, que só eu tive!

E pude blasfemar!
E o meu menino chora, e eu posso já cantar!
E o meu menino canta e eu posso já chorar!
O meu menino vive e toda a vida canta,
Toda a terra é uma fresca e sonora garganta!
Que toda a gente o saiba e toda a terra o veja!
Louvado seja Deus!
Louvado seja!

quinta-feira, 18 de março de 2010

ALMA, SONHO, POESIA

Apresentação do livro Alma, Sonho, Poesia, selecção de poemas, é já no Domingo, dia 21 de Março, às 15h00, aqui. Edição da Fundação António Quadros.


imagem retirada daqui

quarta-feira, 3 de março de 2010

Ilha da grande solidão

"[...] a génese da personalidade de Fernanda de Castro dá-se num ambiente dominado claramente pelo feminino - mulheres que, de maneiras diferentes, são fortes e determinantes no prosseguimento da vida doméstica, ou que simplesmente estão presentes e compõem, com a sua presença e a sua sensibilidade, um ambiende cor-de-rosa (como a casa de família). Tal facto gera nela uma reacção imediata e uma acção a longo prazo: a primeira é a de ser uma «Maria rapaz», um «cabrito montês» que sempre sonhou com aventuras em cavalos de papelão ou em aventuras pela quinta liderando irmão e primo, mais que com delicados chazinhos para as bonecas. A longo prazo determinou, pouco depois da morte da mãe, que Fernanda de Castro se assumisse como a nova dona de casa, a quem competia gerir o ambiente familiar, e que por toda a vida - em tudo aquilo que fez - fosse profundamente feminina, num mundo de homens. Entre um e outro módulo, está a verdadeira Fernanda de Castro - aquela que se refugiava com os seus livros e os seus papéis no velho sótão, no isolamento e na solidão em que afinal, apesar de sempre e tão bem rodeada, viveu toda a vida. Fosse um limbo de educação e geração, de pudor de se revelar selvaticamente esse cavalo a galopar ou esse cabrito a dar coices, fosse um medo qualquer do tempo e do meio em que viveu, a verdade é que a distância a que manteve sempre todas as pessoas, mesmo as mais chegadas, foram fortificando essa sua «Ilha da Grande Solidão»."

Francisco de Almeida Dias, O Diálogo das Artes no Feminino: Fernanda de Castro e Sarah Afonso, duas mulheres de grandes maridos. (2006)