"Minha querida Cecília:
Tenho pensado em ti estes últimos tempos que isto quer dizer com certeza qualquer coisa. Quer dizer, pelo menos, que estás a reclamar, a chamar-me coisas feias, a dizer que sou preguiçosa, ingrata, volúvel, coisas que sabes perfeitamente injustas. A verdade, a verdadinha é que tu sempre foste uma criatura metódica, arrumadinha, com horas para tudo - até para não fazer nada - e eu continuo um bicho selvagem que funciona por entusiasmos, por impulsos, por emoções, em suma uma pessoa que nunca teve relógio, deita fora os calendários, que é capaz de trabalhar horas a fio mas incapaz de trabalhar seja no que for, meia hora por dia à mesma hora. Não te lembras do que disse o Johan Bojer naquele dia em que fomos passear ao campo?
- "Você Cecília, tem mais calor, e você Fernanda, mais fogo!" Questão de signos talvez, mas a verdade é que a minha suposta inconstância era apenas a natural reacção à tua desesperante regularidade. por exemplo tu escrevias-me um cartão com meia dúzia de linhas e eu respondia-te, se estava de maré, com uma carta de seis páginas em que te dizia tudo o que se podia dizer e em que tu, espertinha como és, lias tudo o que se não diz, todo o indizível (...)"
Fernanda de Castro
«Cartas para além do Tempo», pp.43-49.
(Europress, 1990)