"Meus versos eram rosas, lírios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.
Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.
E a festa continua... é também festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,
o gosto a mar, a lágrimas, a sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste à morte."
Fernanda de Castro, in «E Eu, Saudosa, Saudosa»
quinta-feira, 4 de junho de 2009
O Saco de Retalhos
Velho saco, onde estavas? No baú
das coisas mortas,
esquecidas como tu?
Guardado na gaveta
como as sedas, as cassas,
os ramos de violeta,
a poeira e as traças?
Velho saco, onde estavas? Pendurado
numa daquelas portas
que um dia se fecharam
sobre a infância, o passado,
e nunca mais se abriram?
Ou no sótão,
na trouxa dos farrapos,
misturado com os trapos?
Velho saco dos tempos esquecidos,
nos teus retalhos desbotados
reconheço os meus bibes,
as chitas e os percais dos meus vestidos.
Estes velhos riscados
foram saias, corpetes, aventais
de criadas que então eram meninas.
E estas cambraias, estas sedas finas,
usou-as minha mãe.
Ó velho saco, feito de retalhos,
rever-te fez-me bem.
Este linho desfeito, remendado,
foi lencol de noivado,
e quantas vezes te vi pôr na cama,
ó minha ama,
esta chita vermelha de ramagens.
Meu velho saco, meu livro de imagens,
rever-te fez-me bem.
Não sei, porém,
que travo amargo esta alegria tem,
que tristeza me fez, que nostalgia,
ver surgir na distância
a minha infância,
descosida, em farrapos,
e reencontrar a minha mocidade
remendada e puída
numa saca de trapos.
Ó saco, ó velho saco de farrapos,
já não sei, afinal,
se ver-te me fez bem ou me fez mal.
Fernanda de Castro In "70 Anos de Poesia", Fundação Eng. António de Almeida,
Agosto, 1989, págs. 126-127.
das coisas mortas,
esquecidas como tu?
Guardado na gaveta
como as sedas, as cassas,
os ramos de violeta,
a poeira e as traças?
Velho saco, onde estavas? Pendurado
numa daquelas portas
que um dia se fecharam
sobre a infância, o passado,
e nunca mais se abriram?
Ou no sótão,
na trouxa dos farrapos,
misturado com os trapos?
Velho saco dos tempos esquecidos,
nos teus retalhos desbotados
reconheço os meus bibes,
as chitas e os percais dos meus vestidos.
Estes velhos riscados
foram saias, corpetes, aventais
de criadas que então eram meninas.
E estas cambraias, estas sedas finas,
usou-as minha mãe.
Ó velho saco, feito de retalhos,
rever-te fez-me bem.
Este linho desfeito, remendado,
foi lencol de noivado,
e quantas vezes te vi pôr na cama,
ó minha ama,
esta chita vermelha de ramagens.
Meu velho saco, meu livro de imagens,
rever-te fez-me bem.
Não sei, porém,
que travo amargo esta alegria tem,
que tristeza me fez, que nostalgia,
ver surgir na distância
a minha infância,
descosida, em farrapos,
e reencontrar a minha mocidade
remendada e puída
numa saca de trapos.
Ó saco, ó velho saco de farrapos,
já não sei, afinal,
se ver-te me fez bem ou me fez mal.
Fernanda de Castro In "70 Anos de Poesia", Fundação Eng. António de Almeida,
Agosto, 1989, págs. 126-127.
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