I
Ó arvore, alguém pensou
Na tua imensa alegria
Quando enfim rompeste a crosta
E alcançaste a luz do dia?
II
Manhã cedo, na mata,
respira-se mais fundo.
Tudo é puro, auroral, duma inocência
de princípio do mundo.
De ti mesma cativa,
sem pressas, folha a folha, vais crescendo
com uma falsa indolência
Árvore, como invejo
a tua paciência!
III
Lentamente, cresceste,
eras frágil, pequena,
como um pé de violeta.
Vergavas sob o peso duma abelha
ou duma borboleta.
Depois, cresceste
a muito custo,
o pé de violeta
transformou-se em arbusto.
Então, ano após ano,
o arbusto fez-se árvore, tão forte
que nem o vento lhe faz dano.
Agora, desse tempo, nada resta:
o é de violeta
é um deus da floresta.
IV
Árvore, alguém te perguntou:
És feliz, infeliz,
Imóvel presa ao chão
Pela raiz?
V
Árvore,
eu sinto em mim o teu sofrimento,
sempre que o vento, à doida, à toa,
te fere, te magoa,
eu tenho calafrios, pesadelos,
como se o vento em vez de sacudir-te
e de arrancar-te as folhas,
me arrancasse os cabelos.
VI
Quando à noite abro as janelas
não é só por ter calor
ou para ver as estrelas:
é mais para respirar
e para dormir melhor,
porque sei que as tuas folhas,
exalam de noite o ar
que me alivia a fadiga
e que me lava os pulmões,
ó árvore minha amiga.
VII
Pássaros, vossa vida que seria
sem o doce aconchego das ramagens
onde escondeis as asas e as plumagens,
quando anoitece, à espera de outro dia?
Quando se cala a vossa melodia
e regressais, exaustos de viagens,
de voos sem destino, de miragens,
de amorosa, secreta fantasia,
voltais à paz do ninho, às vossas casas
onde cabem, exactas, vossas asas
e os filhos que de vós hão-de nascer.
Ó árvores da mata, da floresta,
o chilreio das aves é uma festa
que só a vida pode agradecer.
VIII
Árvore,
alguém ouviu o teu lamento
quando o vento,
esse cavalo doido à desfilada,
deixa a sua pégada
em cada flor, cada rebento,
cada frágil ramada?
IX
Se acaso estás cansado,
se uma pena, um cuidado,
uma onda de tédio
te dão a sensação
de que tudo na vida é sem remédio,
vai procurar a sombra duma árvore,
olha as folhas, os ramos, os botões,
enche de ar os pulmões
e saberás, então,
que essa árvore estava à tua espera,
só para te dizer:
"Queiras ou não,
Amigo, é Primavera!"
X
E tudo o mais que as árvores nos dão
na dádiva telúrica e total
duma vida que à vida se destina,
desde a flor e dos frutos à resina,
desde a resina à casca estaladiça
da cortiça,
da cortiça arrancada
à árvore passiva,
à árvore submissa,
deixando-a sangrar, em carne viva.
E tudo o mais que as árvores nos dão:
frutos de inverno, frutos de verão,
ó árvores das matas e das quintas,
para as bocas sedentas,
para as bocas famintas.
E onde vamos buscar as nossas brasas,
o lume das lareiras, o calor,
e as madeiras das casas,
das vigas ao sobrado?
Acaso não será à tua dor
à dor do tronco retalhado
a golpes de machado?
XI
E não esqueçam, por favor,
essas árvores de flor,
que são só para enfeitas,
com seu jeito, sua graça,
cada rua, cada praça;
que são só para alegrar
as vidas sem horizontes,
como se fossem as fontes,
duma tímida esperança;
que são só para enxugar
o choro duma criança
ou lágrimas de mulher,
duma pessoa qualquer;
que são só para evitar
um gesto desesperado
na Cidade indiferente,
quando sofre, lado a lado,
muita gente, tanta gente:
que são só para abrigar,
quando, à sombra dos seus ramos,
se trocam beijos de amor;
que só servem para pôr
alegria na tristeza
e pouco mais... para dar
uma gota de beleza
a quem por elas passar...
essas árvores de flor
que são só para enfeitar.
XII
Se vires uma árvore,
e se fores comigo,
faz, Irmão, o que eu faço:
pára e dá-lhe um abraço,
não tens melhor amigo.
Fernanda de Castro
em E eu saudosa, saudosa...
(1973)