quinta-feira, 29 de maio de 2014

Fernanda de Castro na Semana de Arte Moderna de São Paulo


"Resignada mas inquieta - qual inquieta, aterrada! -, lá organizei os programas, lá aprendi penosamente os poemas e no dia previsto lá entrei no palco como o touro entra na arena ou o cordeiro na ara do sacrifício.
(Além de tudo, naquele tempo, não havia microfones e o teatro era enorme e estava à cunha!) Calculem, pois, a minha profunda surpresa ao chegar ao fim do recital sem desastre de maior e até com certo êxito talvez (talvez, não!, com certeza!) por ter então vinte anos e um vestido verde que me ficava bem. A propósito deste mesmo vestido verde lembro-me que de que a Tarsíla do Amaral e Anita Malfatti, as duas maiores pintoras do Brasil, me pediram para fazer o meu retrato com o dito vestido. Posei para as duas ao mesmo tempo e ainda há poucos anos me disseram que os dois retratos tinham sido expostos em São Paulo, numa retrospectiva da pintura brasileira, dos anos vinte e trinta. (....) 
Aquela revolução literária em que a gente nova das letras e das artes, de sangue na guelra, a golpes de panfletos, de discursos, de artigos nos jornais, deu um golpe de morte nos conformistas, nos académicos, nos botas-de-elástico, inesquecível semana em que convivemos diariamente com alguns daqueles que, mais tarde, foram os grandes do Brasil: Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Monteiro Lobato,  Menotti del Picchia, José Lins do Rego, Guilherme de Almeida, Paulo Prado e outros de que me lembro menos bem. (...)
Lembrei-me agora, ao copiar estas linhas, de um pequeno episódio cómico que ia acabando muito mal. Estávamos instalados na Rotisserie Sportsman, o melhor hotel de São Paulo nessa época, e todos os nossos amigos iam buscar-nos para um jantar, um passeio, uma visita, uma sessão de cinema. Nessa noite éramos todos convidados de D.Olívia Penteado. (...) Segal, Tarsila, Anita Malfatti, Sergio Milliet, Plínio Salgado, etc., reuniam-se em tremendos conciliábulos e conspiravam continuamente contra todos os burgueses, contra todos os éteceteras da vida, como lhes chamou o António (...). Vesti, pois, o melhor vestido que tinha, de marrocain preto (ainda não o esqueci, como havia de esquecê-lo?) e lá fomos todos até à encruzilhada onde devíamos esperar o bonde.
De repente, já bastante longe do hotel, começou a chover torrencialmente, e à medida que ia chovendo, chovendo, pingos tão grossos que cada um chegaria para matar a sede a um pássaro, o meu vestido ia encolhendo, encolhendo, de tal modo que os meus amigos começaram a rir como doidos, sem me poderem sequer dizer porquê. (...) O meu vestido já não podia encolher mais. (...) Deu-se então uma coisa absurda: o nosso táxi, que estava parado sobre os rails do bonde, foi apanhado por este, que não pôde parar a tempo, e atirado de pernas para o ar, para o lamaçal em que se tornara a estrada de terra batida. Desta vez todos se assustaram, tiraram-me do táxi num estado lastimoso (...). E aqui está como me apresentei pela primeira vez em casa da mulher mais rica e mais elegante de São Paulo, cheia de lama, despenteada, com o resto do vestido pelos joelhos e as meias rotas.
Escusado será dizer que fui recebida triunfalmente e proclamada a Rainha da Semana de Arte Moderna de São Paulo. (...)"

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória, vol. I

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