segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Irmãs Meireles interpretam "Um grande amor" de Fernanda de Castro.


"Vira da Desfolhada" na versão de Fernanda de Castro, no filme «As Pupilas do Senhor Reitor»


«As Pupilas do senhor Reitor», Leitão de Barros (1935)

ELE: Roubei-te um beijo Maria/ Desde esse dia/morra se minto/ por uma coisa tão pouca/ pica-me a boca / não sei que sinto/ELA: Mal haja o ladrão de estrada/ te renego, cruzes, figas/ beijo dado sabe a rosas/ mas roubado sabe a urtigas/ CÔRO: Vira, vira, virou/ vira e torna a virar/ Roda, roda, rodou/ Cada qual com seu par/ ELA: A chita da minha blusa/ já não se usa/ foge demónio/ Não quero a tua riqueza/ quero a pobreza/ do meu António/ ELE: Fazes mal ó moreninha/ que o amor de marinheiro/ sobe e desce como as ondas/ é como agulha em palheiro/ CÔRO: Vira, vira, virou/ vira e torna a virar/ Roda, roda, rodou/ Cada qual com seu par/ ELE: Adeus, amor vai-te embora/ deita-me fora/ não tenhas dó/ A roseira mais bravia/ não tem Maria/ uma rosa só.

Teresa Salgueiro interpreta "Vira da Desfolhada" na versão de Fernanda de Castro

Fernanda de Castro, Ary dos Santos e Inês Guerreiro


I Festival do Algarve (1964)

Descerramento da placa comemorativa

Amália Rodrigues e Fernanda de Castro

No I Festival do Algarve, org. de Fernanda de Castro (1964)

Fernanda de Castro e Amália Rodrigues


"É claro que não tenho tempo nem espaço para contar demoradamente todos os números que constituíram este Festival. Não posso, no entanto, deixar de me referir, embora ao de leve, a alguns dos seus pontos mais altos. Estou a pensar por exemplo na Festa da Lua, em Armação de Pêra: primeiro, uma visita às furnas, iluminadas com archotes, onde vivem centenas ou talvez milhares de pombas-bravas; no mar, todos os barcos de Armação engalanados e iluminados; no meio do areal, um barco colorido, rodeado por uma guarda de honra de pescadores, de remos ao alto. E, sobre esse barco, pálida, sob a pálida brancura da Lua, Amália, sozinha, de pé, com um vestido negro que a tornava ainda mais branca. Na praia, coalhada de gente, um silêncio mortal. Começaram a ouvir-se as guitarras escondidas na sombra e a voz de Amália, vibrante, pura como um cristal, abalou o silêncio, a noite, a própria Lua que a iluminava. Havia uma leve aragem e eu disse à Jacqueline, que tinha vindo passar umas semanas a Alporchinhos:
Dommage qu’il fasse un peu froid.
Ao nosso lado uma francesa, elegante e muito bela, voltou-se para mim, sorriu e disse:
Qu’est-ce que ça fait, madame! C’est beau, c’est terrivelmente beau!
Amália cantou, cantou, cantou durante duas horas, e depois, quebrado o fascínio, andou de grupo em grupo na praia, onde tínhamos preparado, sobre a areia, uma ceia bem típica: «vilas» de amêijoas, ostras e polvos grelhados, azeitonas britadas com orégãos, pão de trigo, queijos de Serpa, vinho da Lagoa e de Portimão, figos e amêndoas, morgadinhos e dom-rodrigos, aguardente de medronho, etc., etc., tudo incluído no bilhete de entrada no grande recinto reservado da praia. Foi nessa ceia que o Larbi Jacoubi, visivelmente impressionado com Amália, tirou do dedo um anel que lhe ofereceu com estas palavras:
– Como vê, este anel tem como adorno um olho de boneca. Tenho outro igual em Tânger, com o outro olho da mesma boneca. Use este, que eu vou usar o outro, e assim ficaremos ligados até ao fim da vida.
Não sei por onde andará a estas horas o anel do Larbi. O da Amália, na melhor das hipóteses, está certamente esquecido, abandonado, no fundo duma dessas gavetas que se abrem de anos a anos e que cheiram a passado, a coisa morta, a velhos perfumes que foram mas que já não são.
(...) Limitar-me-ei, pois, a falar dos dois pontos mais altos desta nova série de espectáculos. Amália cantava em Albufeira sobre um estrado de madeira, numa grande esplanada na praia. Estava um pouco de vento e havia humidade no ar. Quando Amália chegou a meio da tarde, convidei-a para tomar chá no hotel e ela disse-nos, à Inês e a mim, que estava preocupada com a sua garganta, pois, além de não gostar de cantar ao ar livre, a tarde não fazia prever de modo algum uma daquelas noites mornas tão frequentes no Algarve. A certa altura a Inês afastou-se e nós ficámos sozinhas a saborear o nosso chá numa pequena sala confortável e deserta. Conversámos então um pouco. Em dado momento perguntei-lhe: 
 – O que pensa, Amália, quando lá fora, diante duma plateia cosmopolita, é alvo de tão grandes e tão espontâneas ovações? Ela calou-se um momento e respondeu com um ar de profunda sinceridade: 
 – Penso que nada daquilo é comigo, que eu estou ali, sim, mas que não sou eu, que estou longe, muito longe, e que estou a cantar, a agradecer e a sorrir como se fosse outra pessoa, como se de qualquer modo estivesse a receber aplausos que não me eram destinados. A sinceridade da sua voz comoveu-me. Aliás, Amália surpreende-me sempre. Um dia, tendo cortado os cabelos, que usava então pelos ombros, não pude esconder a minha pena e exclamei: 
 – Oh, Amália, os seus cabelos! Que pena! Ela sorriu e perguntou-me: 
 – Estou horrível, não estou? – E acrescentou: – E agora primeiro que cresçam... Sabe como lhes chamo? «Crime e Castigo»! 
Disse há pouco que a Inês nos deixara, mas não disse porquê. Vendo a nossa preocupação por causa do tempo, sabem o que ela fez? Foi ter com um velho marinheiro e com o auxílio dele montou no estrado uma vela de traineira, que, logo que Amália começou a cantar, se ergueu como se o estrado fosse de facto um barco a fazer-se ao mar. Este efeito de cena era duma tal beleza que foi recebido com uma enorme ovação. Estavam centenas de pessoas presentes, sobretudo estrangeiros, e Amália, assim protegida do vento, pôde cantar, duma maneira fabulosa, sem prejuízo da sua prodigiosa garganta. Se a vida fosse uma estrada larga, uma recta do princípio ao fim, a memória poderia acompanhá-la sem solavancos, sem desvios, sem intermitências. A vida porém é um caminho sinuoso cheio de atalhos, de desvios, de encruzilhadas, onde a memória às vezes se perde e onde é preciso persegui-la até reencontrarmos o fio condutor. (...)"

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória, vol. II

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Testamento

Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo;
caixão de tábuas, derradeira casa,
onde repousarei, frágil abrigo,
até me libertar num golpe de asa.
Então, quando estiver a sós comigo,
que ninguém chore porque o choro atrasa,
mas que alguém, se quiser, num gesto amigo,
ponha roseiras sobre a campa rasa.
Será medo o que sinto? Não é medo.
Serei, não serei digna do Segredo?
Ah, meu Deus, para lá das nebulosas,
Mereça ou não a expiação, a dor,
entrego-Te a minha alma sem temor.
O que resta, o que sobrar, é para as rosas.

Fernanda de Castro

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Nunca completamente

"Gostava de me esconder no sótão e de me perder na rua e aborrecia-me verificar que não conseguia nunca perder-me completamente." 

 Fernanda de Castro

Virgínia Vitorino, Olga de Morais Sarmento e Fernanda de Castro (1930).


sábado, 18 de outubro de 2014

Capa de Sarah Affonso

As Aventuras de Mariasinha, Vicente e companhia
Edição Casa do Livro (s.d)

Canção

"É viúva do escritor António Ferro. A sua poesia patenteia-se fremente, banhada da claridade do sol e álacre pela vida que nela estua. Noutras vezes, porém, a sua alma espreita, compadecida, os infortúnios humanos e deles recebe o tom da sua canção."

João Cabral do Nascimento 
sobre Fernanda de Castro em Líricas Portuguesas, Segunda série
via Antologia do esquecimento, de Henrique Manuel Bento Fialho.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Jardim Fernanda de Castro

"A autora de Cidade em Flor (1924) e Jardim (1928) dá apropriadamente o seu nome a um jardim de Lisboa, na Encosta do Restelo, desde a publicação do Edital de 30/07/1999 e cerca de 5 anos após o seu falecimento. (...)"

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sábado, 2 de agosto de 2014

Quando Ferro entrevista Hitler


"Começa metendo “eu” na reportagem (Chego a Munique…) e vai prosseguir com uma escrita viva e coloquial. Junta a isso o sentido de oportunidade do bom jornalista: pouco depois de o Partido Nazi ter começado a sua ascensão institucional (em setembro de 1930, com 107 deputados tornara-se o segundo maior partido no parlamento alemão, Reichstag, só ultrapassado pelos socialistas), o repórter internacional do DN António Ferro, vindo de Berlim, desce do wagon-lits na capital da Baviera. Vai “para ver Hitler, para falar a Hitler, para conhecer o herói do romance…”, em Munique, a cidade onde as fardas paramilitares das SA impõem já a ordem castanha. (...) Ao seu hotel vai ter um enviado do partido, um alemão enorme, chegado de bicicleta: um bávaro cordial, insinuante, duma instintiva amabilidade, uma daquelas canecas altas, acolhedoras, espumantes da Casa da Cerveja, da Hofbrauhaus.
Este homem, que Ferro julga ser um simples funcionário do partido, vai dar-lhe a má notícia de que Hitler não dá entrevistas a quem não fala alemão mas só o odiado francês… Hanfstaengl também se inquieta com a condecoração que o português traz ao peito, mas não, não é a Légion d’Honneur, é a Cruz de Cristo, portuguesa – tranquiliza Ferro, que, no entanto, a guarda no bolso. O jornalista insiste, mostra o seu livro Viagem à Volta das Ditaduras, entrevistas a Mussolini, ao espanhol Primo de Rivera, ao turco Atatürk… -, Ferro quer convencer com o seu gosto por homens fortes (e ainda não escrevera Salazar, o Homem e a Obra, que só seria publicado em 1933). Hanfstaengl morde o isco e pede-lhe para ele dedicar um exemplar a Hitler. (...)"

Ferreira Fernandes
DN, 2 de Agosto de 2014

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Uma obra social limada de asperezas

"Não é demais pôr em relevo a figura da criadora dos Parques Infantis, a grande poetisa Fernanda de Castro, que concebeu uma obra social limada de asperezas, que soube amparar as crianças com a mesma alma em flôr com que escreveu os seus versos. (...)"

Maria Archer
(1943)

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Festa redonda


A Fernanda de Castro
e António Ferro
à sua partida para Berna - esta lembrança
do seu velho camarada

Vitorino Nemésio

terça-feira, 24 de junho de 2014

Bruno e Sílvia

 - Tens medo? - perguntou Bruno.
Sílvia fechou os olhos e murmurou, à beira das lágrimas:
- Não.
- Queres?
Tinha chegado o momento. Que lhe dissera um dia o velho senhor? Ah, sim: «A vida é um jogo franco, ganha quem merece ganhar. E só merece ganhar quem se arrisca, quem fecha os olhos e mergulha.»
- Queres? - insistiu Bruno.
- Quero.
O resto foi rápido. Bruno ajudou Sílvia a entrar no barco, pegou nos remos, afastou-se da margem, remando para o sítio mais fundo, onde as flores dos golfões pareciam estrelas brancas a boiar.

Fernanda de Castro
Fontebela (1973)

Não sabes?

 - Não sabes que às vezes se fala por tédio, por tristeza, por solidão?

Fernanda de Castro
Fontebela (1973)

sábado, 21 de junho de 2014

Não sei se já reparaste

- Mais ou menos. Mas o que eu gosto é de te ouvir falar.
Não sei se já reparaste que normalmente falas muito pouco. Às vezes é difícil arrancar-te uma palavra.

- É estranho, não dou por isso. Deve ser porque não gosto de falar, gosto só de dizer.

Fernanda de Castro 
Tudo é princípio (póstumo)

Tudo é princípio

- Saudades, recordações?
- Não, tudo isso é dor e passado. Esperança.
- Esperança em quê?
- No futuro.
- E os que não têm futuro?
- Todos têm futuro. Este minuto exacto. Sofia, é presente, mas já pensou que o minuto seguinte já é futuro?
- E os que chegam ao fim, ao último minuto?
- Está a falar da morte?
- Sim, da morte.
- A morte, Sofia, é a maior esperança da vida. Não consigo explicar-lhe nada disto, mas é o que sinto.

Fernanda de Castro
Tudo é princípio (póstumo)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Anjo de sal



Poetas

Tive uma irmã gémea 
Sonhou com o céu. Chorou.
Nuvemzinha boémia.

Gullherme de Almeida
O anjo de sal (1951)



terça-feira, 17 de junho de 2014

Auto das oferendas


Agora, Adeus. Que Deus fique 
Sobre vós, como em Ourique.

António Corrêa d'OliveiraAuto das oferendas
composto para o cortejo "Festa do Trabalho" em Viana do Castelo.
1 de Maio de 1938

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Bruno

Mariana

Não me pergunta quem sou?

Bruno

Que importa um nome? Muito prazer.

Mariana

Igualmente. Mariana.

Bruno

Bruno

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)

Pereiras

Luís Coutinho

Que importância é que isso tem? Recuso-me a ser escravo das horas, como aliás de tudo o que exclua a fantasia. E agora, desculpem, vou deixá-los, as pereiras estão em flor.

Teresa

As pereiras?

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)


Os cães não mordem

Teresa

Não acredita na ciência?

Luís Coutinho

Acredito, é uma forma de reconhecer Deus. No século passado ainda se pensava que a ciência seria sempre a maior inimiga de Deus. Hoje não estamos longe de acreditar que só a ciência será um dia capaz de provar a sua existência.

Mariana

Duvido muito.

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)

Até porque acredito, como Goethe (etc.)

Teresa

Quem me dera amar assim a vida!

Mariana

E odiar assim a morte!

Luís Coutinho

Perdão, eu não odeio a morte, até porque acredito, como Goethe, que o Espírito caminha de Eternidade em Eternidade e que é de natureza absolutamente indestrutível. Não, o que me dói é pensar que uma morte prematura, mesmo não desejada, pode impedir uma vida de cumprir-se. Que lhe parece, padre José?

Padre José

Não me parece nada... Sou um pobre padre de aldeia que pensa o menos possível.

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)

Quantos anos tens? Cem.

Bruno, rindo.

Quantos anos tens?

Teresa

Cem. (Rectificando) Dezoito.

Bruno

Estudas?

Teresa

Mais ou menos. Filosofia.

Bruno

Não digas mais nada, só suporto as pessoas enquanto posso imaginá-las como quero: vagas, fluídas, susceptíveis de desaparecer dum momento para o outro, como fantasmas ou miragens.

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)

Feia

Marcos

Serias mais feliz se alguém te domesticasse, se sofresses...

Mariana

Nem todos sofrem da mesma maneira e pelas mesmas razões.

Marcos

Bem sei, julgas-te feia.

Mariana

Não julgo: sou feia, antipática e desastrada.

Marcos

Deixa-te de asneiras, quem te meteu isso na cabeça?

Mariana

Nega, diz que sou bonita.

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)

Se o amor, um dia

Luís Coutinho, com doçura

Falta-lhe amor, Mariana...

Marcos

Acha que o amor pode substituir tudo... a justiça, por exemplo?

Luís Coutinho

Se amássemos não seríamos injustos.

Mariana

Muito bonito, em teoria... mas a violência, a intolerância, o despotismo, a guerra.

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)

Ouviu?

Luís Coutinho

Os sonhos duram exactamente o que nós quisermos que eles durem. (...) A vida é uma coisa magnífica... Ouviu, Teresa? Magnífica!

Teresa

Nunca dei por isso.

Mariana

Nem eu.

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)

Ganha quem ganha

Luís Coutinho

Tudo, a vida é um jogo franco, ganha quem merece ganhar. E só merece quem se arrisca, quem fecha os olhos e mergulha...

Teresa

Nem todos sabem nadar e há quem nasça com uma pedra amarrada ao pescoço.

 Fernanda de Castro 
Os cães não mordem (Póstumo)

Ar

Teresa, comendo sem repugnância.

Que tem este ar que nos dá vontade de viver, mesmo quando temos vontade de morrer?

Fernanda de Castro
Os cães não mordem (Póstumo)

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Fernanda de Castro na Semana de Arte Moderna de São Paulo


"Resignada mas inquieta - qual inquieta, aterrada! -, lá organizei os programas, lá aprendi penosamente os poemas e no dia previsto lá entrei no palco como o touro entra na arena ou o cordeiro na ara do sacrifício.
(Além de tudo, naquele tempo, não havia microfones e o teatro era enorme e estava à cunha!) Calculem, pois, a minha profunda surpresa ao chegar ao fim do recital sem desastre de maior e até com certo êxito talvez (talvez, não!, com certeza!) por ter então vinte anos e um vestido verde que me ficava bem. A propósito deste mesmo vestido verde lembro-me que de que a Tarsíla do Amaral e Anita Malfatti, as duas maiores pintoras do Brasil, me pediram para fazer o meu retrato com o dito vestido. Posei para as duas ao mesmo tempo e ainda há poucos anos me disseram que os dois retratos tinham sido expostos em São Paulo, numa retrospectiva da pintura brasileira, dos anos vinte e trinta. (....) 
Aquela revolução literária em que a gente nova das letras e das artes, de sangue na guelra, a golpes de panfletos, de discursos, de artigos nos jornais, deu um golpe de morte nos conformistas, nos académicos, nos botas-de-elástico, inesquecível semana em que convivemos diariamente com alguns daqueles que, mais tarde, foram os grandes do Brasil: Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Monteiro Lobato,  Menotti del Picchia, José Lins do Rego, Guilherme de Almeida, Paulo Prado e outros de que me lembro menos bem. (...)
Lembrei-me agora, ao copiar estas linhas, de um pequeno episódio cómico que ia acabando muito mal. Estávamos instalados na Rotisserie Sportsman, o melhor hotel de São Paulo nessa época, e todos os nossos amigos iam buscar-nos para um jantar, um passeio, uma visita, uma sessão de cinema. Nessa noite éramos todos convidados de D.Olívia Penteado. (...) Segal, Tarsila, Anita Malfatti, Sergio Milliet, Plínio Salgado, etc., reuniam-se em tremendos conciliábulos e conspiravam continuamente contra todos os burgueses, contra todos os éteceteras da vida, como lhes chamou o António (...). Vesti, pois, o melhor vestido que tinha, de marrocain preto (ainda não o esqueci, como havia de esquecê-lo?) e lá fomos todos até à encruzilhada onde devíamos esperar o bonde.
De repente, já bastante longe do hotel, começou a chover torrencialmente, e à medida que ia chovendo, chovendo, pingos tão grossos que cada um chegaria para matar a sede a um pássaro, o meu vestido ia encolhendo, encolhendo, de tal modo que os meus amigos começaram a rir como doidos, sem me poderem sequer dizer porquê. (...) O meu vestido já não podia encolher mais. (...) Deu-se então uma coisa absurda: o nosso táxi, que estava parado sobre os rails do bonde, foi apanhado por este, que não pôde parar a tempo, e atirado de pernas para o ar, para o lamaçal em que se tornara a estrada de terra batida. Desta vez todos se assustaram, tiraram-me do táxi num estado lastimoso (...). E aqui está como me apresentei pela primeira vez em casa da mulher mais rica e mais elegante de São Paulo, cheia de lama, despenteada, com o resto do vestido pelos joelhos e as meias rotas.
Escusado será dizer que fui recebida triunfalmente e proclamada a Rainha da Semana de Arte Moderna de São Paulo. (...)"

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória, vol. I

Une bombe à tout casser

Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Yvette Farkou, Fernand Lèger e Constantin Brancusi

"A propósito de Paris, lembro-me de que estive lá a primeira vez, já casada, com 23 anos, se não me engano, a convite dos nossos grandes amigos brasileiros Oswald de Andrade e sua mulher, Tarsila do Amaral, que conheceramos em São Paulo no ano anterior. (...) Ela e Oswald viviam uma vida de simpática boémia, de alegre camaradagem com artistas e escritores, sobretudo com músicos, pouco ou nada conhecidos ainda, mas que depressa iriam afirmar os seus nomes. O pequeno e heterogenio grupo a que logo nos associámos era assim constituído: Oswald e Tarsíla, Honegger, Erick Satie, Poulenc, Picabia, Paul Poiret, o intelectual da moda, o António e eu.
Como ele próprio nos disse, Oswald tivera uma pequena herança no Brasil, que no seu entender não chegava para nada a sério, resolvendo por isso gastá-la com Tarsila e os amigos, fazendo enquanto durasse «une bombe à tout casser» (sic).
Todos os dias, às 8 horas, nos encontrávamos em qualquer restaurante ou em qualquer «bistro», e cada um pagava o seu jantar. Depois era tudo por conta do Oswald, que metodicamente organizava os seus programas. (...)
Eu, que nessa altura gostava de me deitar cedo, começava, por volta da uma, a cabecear com sono, até que um dia Oswald se voltou para mim, furioso:
- Gasta a gente um dinheirão com esta mulher e o que ela quer, o que lhe dava mesmo gosto, era ir para a cama, para a caminha, com a chucha e o biberon!
Riram todos e eu mais do que ninguém porque era rigorosamente verdade: biberon e chucha à parte, o que na realide queria, à noite, era deitar-me para saborear Paris, não o Paris nocturno que nunca me interessou muito, mas o Paris diurno que eu andava a soletrar, a decorar pedra a pedra, bairro a bairro, o Paris das Tuileries e de Notre-Dame, do Sacré Coeur e do Bois de Boulogne, da Place Vendôme, do Palais Royal e do Quartier Latin, do Sena, das suas pontes e das suas péniches. (...)"

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória vol. I

Minimáximas para uma amiga impaciente

1) Quanto maior é a sede melhor é a água.
2) A crisálida dorme no casulo, mas um dia a borboleta voa.
3) Se queres uma boa fornada, deixa levedar bem o teu pão.
4) Segura o leme com força: um barco à deriva raramente chega a bom porto.
5) Não há rosa sem espinho, mas não há espinho sem rosa.
6) O Inverno mais rigoroso não impede que as árvores na Primavera se cubram de folhas.
7) A vida é música; e um dos acidentes da música é a pausa.
8) Quando a vida parece morta, está apenas adormecida. Deixa-a descansar: a vida também tem direito à Vida.

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória vol. I

Doido, completamente doido


"Fernanda de Castro registou nas suas memórias a viagem ao Brasil em 1922, onde por sinal casou, apadrinhados por Gago Coutinho, com António Ferro por então mobilizado na apresentação da sua peça teatral “Mar Alto”, que correu em São Paulo e no Rio – e haveria de criar burburinho em Lisboa, no ano seguinte –, e em conferências. Além da já referida, também “A Idade do Jazz-band”, lidas ambas em digressão triunfal pelo Brasil, com acolhimento de Oswald de Andrade, que Fernanda de Castro (igualmente colaboradora da Contemporânea) diria ser doido, completamente doido, apesar de tudo, diferente do seu marido que considerava, apenas, atrevido e ousado. (...)"

Luís Bigotte Chorão 
no blogue Malomil, aqui

sábado, 5 de abril de 2014

Fernanda de Castro, Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira, entre outros


Jantar de homenagem a Natália Correia (1969) no restaurante «A Quinta». Discursaram Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, Natália Correia, José Carlos Ary dos Santos, Hernâni Cidade, Luís Oliveira Guimarães, Fernanda de Castro, entre outros.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Bloco 65 (1965)


O monstro de cimento
não saberá jamais
que há pensamento,
sofrimento,
e muitas coisas mais.

A velha actriz, à janela,
procura no céu a estrela
que imagina ser a dela.

(...)

Fernanda de Castro

segunda-feira, 31 de março de 2014

O POÇO

Ilustração de Luís Manuel Gaspar para o poema «Poço» de Fernanda de Castro
'prelo', 3.ª série, n.º 2, lisboa, incm, maio-ago. 2006

Velho poço de água velha,
que não reflecte nem espelha luz de olhar,
brilho de estrela. 


Toalha verde e amarela
de folhas apodrecidas,
avencas, líquenes, fetos,
sob os quais pulula a Vida
em mim vida repartida:
bactérias, larvas, insectos. 


Paredes viscosas, tortas,
paredes já sem idade
que segregam humidade
e cheiram a coisas mortas.

Vida e Morte confundidas. 

Não há barreiras nem fosso,
nem fronteiras definidas
nas águas turvas do poço.


Fernanda de Castro

sábado, 29 de março de 2014

terça-feira, 11 de março de 2014

Assunto arrumado

"A biografia de Fernanda de Castro (1900-1994) pesa hoje, ainda, sobre a sua obra poética, impedindo uma análise despida das leituras políticas que a biografia implica.Terá que ser a geração agora nos 30 anos, ou mais nova, para quem as contas do Estado Novo sejam assunto arrumado em livros de biblioteca, a fazer a leitura desta poesia, no seu valor literário. (...)"

Carlos Mendonça Lopes
sobre Fernanda de Castro no blogue vicío da poesia
Continue a ler aqui.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Que mania da lógica

"Hoje, quando acordei, ainda era escuro, tinha o quarto cheio de frésias e de lilases. A metade de mim já acordada pensou: «Frésias e lilases no Inverno? Impossível!» A outra metade retorquiu. «Que mania da lógica! O que tem importância é que cheirem bem!."

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória vol. II

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Pobre como S. Francisco


"Pobre como S. Francisco de Assis, fugia dos homens e amava os animais e as coisas - as noites estreladas e os grandes ventos do Norte, as fontes de Roma, as ruas de Paris e os jardins de Espanha. Solitário, para que o barulho ensurdecedor da voz humana o não impedisse de ouvir os maravilhosos silêncios da Natureza, o Poeta do «indizível», do «inexprimível», percorreu todos os caminhos da Europa e do Norte de Africa, - sem pátria, sem família, sem profissão (...)"

Fernanda de Castro 
Introdução a Cartas a um Poeta, de Rainer Maria Rilke
 Portugália (s.d)