quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Chiado

«Rua Garrett», dizem as esquinas,
mas que importa o que dizem os letreiros,
Chiado sempre moço das meninas,
dos ourives, dos chás e dos livreiros?

Chiado imenso que em dois palmos cabe,
pedacinho do mundo a palpitar...
Coração da cidade que nem sabe
do que é feito esse encanto singular.

Espelho de mil faces que reflecte
imagens duma raça em movimento...
Corpos vibrando em longo "tête-à-tête"...
Cabeleiras desfeitas pelo vento.

"Vitrine" em que os olhares das mulheres
tomam a forma incerta dum desejo...
De cada montra nascem mil prazeres...
Anda no ar a vibração dum beijo

Ali perto - canteiro da cidade -
A alma dos jardins, cativa, dorme.
Uma rosa desfaz-se em claridade...
Murcham avencas sob um cacto enorme...

Na montra dos brinquedos - um cartaz
para os olhos purinhos dos bebés -
Um palhaço com ar de Ferrabraz
faz as delícias dum menino inglês.

Nos ourives as jóias são punhais.
As pedrarias ferem como balas.
Há fluidos perturbante e sensuais
na morbidez perversa das opalas...

"Rua Garrett", dizem as esquinas,
mas que importa o que dizem os letreiros,
Chiado sempre moço da meninas,
dos ourives, dos chás e dos livreiros?

Fernanda de Castro
in, Lisboa com seus poetas. 1a ed. -Lisboa : Dom Quixote, 2000, p. 94

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Carta de Cecília Meireles sobre o suicídio do marido

"A Fernanda de Castro escreveu-me muito aflita e falou-me em publicar um livro meu. Não sei que livro é. Parece-me que a sua intenção seria facilitar-me recursos de qualquer espécie, calculando as minhas dificuldades. E agradeco-lhe muito." A carta pode ser lida aqui.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

De Diogo de Macedo para Fernanda de Castro

Diogo de Macedo, s/título, 1921

à Exmª Senhora D. Fernanda / de castro Ferro / reconhecido / pela sua amiga lembrança / offr. o D. 1928

Diogo Cândido de Macedo nasceu em Vila Nova de Gaia em 1889 e morreu, em Lisboa, em 1959. Foi um escritor e escultor português. Estudou na Academia Portuense de Belas-Artes. Frequentou o atelier de Antoine Bourdelle em Paris e foi a partir de 1944 o director do Museu Nacional de Arte Contemporânea, cargo que exerceu até à data da sua morte.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Dia 13 de Novembro na Casa-Museu João Soares

Sessão de leituras dedicada a Fernanda de Castro dia 13 de Novembro às 21h30, na Casa-Museu João Soares em Cortes, Leiria. Mais informações aqui.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Pintura a óleo de Anita Malfatti

Fernanda de Castro. 1922. óleo s/ tela (73,5x54,5). Col. Marta Rossetti Batista, SP.


Anita Catarina Malfatti foi uma pintora e professora brasileira. Nasceu em São Paulo, a  2 de dezembro de 1889 e morreu na mesma cidade a  6 de novembro de 1964. Estudou na Academia Real de Belas Artes de Berlim e viveu em França e nos EUA. A sua primeira exposição individual acontece em São Paulo, em 1914, no Mappin Stores. Integrou a SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna) e foi presidente do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo.

Memória Livre

"[...] Enfim, seja como for, o que importa sublinhar, parece-me, é que estas balizas temporais não se apresentam intransponíveis. Primeiro, porque à narração dos factos evocados  Fernanda de Castro junta a do próprio acto de evocar -  e essa decorre nos anos 80. Depois, porque nem mesmo as coisas evocadas -  figuras ou acontecimentos ou simples momentos vividos - se contêm todas, obedientemente, entre 1906 e 1939... A memória flui abundantemente e caprichosa como um rio em cheia, extravasando das margens impostas." 

Esther de Lemos
Memória livre [crítica a 'Ao Fim da Memória - Memórias (1906-1939)', de Fernanda de Castro], in Colóquio Letras nº 98, (Jul. 1987) pp. 89-92 Continue a ler aqui. A recensão crítica ao II volume de memórias pode ser lida aqui.

Maria Esther Guerne Garcia de Lemos é uma escritora portuguesa. Nasceu no Bombarral no dia 2 de Novembro de 1929. É licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Traduziu Boccaccio, Petrarca, Pascal, La Fontaine, etc. Recebeu o Prémio Eça de Queirós com a publicação de Companheiros (1959), e escreveu, entre outras obras, A Literatura Infantil em Portugal, Lisboa, 1972; Rapariga, s/l, 1949; A Menina de Porcelana e o General de Ferro: contos infantis, Lisboa, 1957; A Borboleta sem Asas, Lisboa, 1958; A Rainha da Babilónia, Lisboa, 1962; etc.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Um Pássaro a Morrer

Não é vida nem morte, é uma passagem,
nem antes nem depois: somente agora,
um minuto nos tantos duma hora.
Uma pausa. Um intervalo. Uma viragem.


Prisioneira de mim, onde a coragem
de quebrar as algemas, ir-me embora,
se tudo o que em mim ria agora chora,
se já não me seduz outra viagem?


E nada disto é céu nem é inferno.
Tristeza, só tristeza. Sol de Inverno,
sem uma flor a abrir na minha mão,


sem um búzio a cantar ao meu ouvido.
Só tristeza, um silêncio desmedido
e um pássaro a morrer: meu coração.

Fernanda de Castro

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

António Ferro é Sérgio Moras e Fernanda de Castro é Vânia Maia em peça de Helder Costa

"E se a trama principal é este jogo de conspiração política, onde surgirão também, de forma caricatural, o rei de Espanha, o general Milan Astray (Célia Alturas), Salazar (Pedro Borges) e a sua governanta, Hélder Costa não descura a importância do papel dos artistas, desde António Ferro (Sérgio Moras), a sua mulher, a escritora Fernanda de Castro (Vânia Maia), a Almada Negreiros (Adérito Lopes) e ao próprio Fernando Pessoa, não poupando críticas o movimento “ORPHEU” de 1915, acusando-o de ser um movimento vanguardista anti-republicano e futurista que serviria, na sua maioria, de apoio à ditadura salazarista. Como contraponto a este movimento intelectual Hélder Costa ressalta o papel da Seara Nova, destacando as intervenções de Jaime Cortesão (Sérgio Moura Afonso) e Raul Proença (Ruben Garcia)."

O Mistério da Camioneta Fantasma, de Helder Costa está em cena de 23 de Setembro a 14 de Novembro, de 5 ª a Sábado às 21h00, Domingo às 16h00, na sala 1 do TeatroCinearte (A Barraca).

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Leitura de poemas de Fernanda de Castro em Simão Dias no Brasil

O Colégio Pierre Freitas em Simão Dias, no Brasil, promoveu no passado dia 19 uma sessão de leitura de poemas de Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Fernanda de Castro, entre outros.

Toda a notícia aqui.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Varinas

Musicado e interpretado por Frei Hermano da Câmara, veja aqui.

Varinas, poema de Fernanda de Castro publicado em 1922 na I.P.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Os Anos São Degraus

Os anos são degraus, a vida a escada.
Longa ou curta, só Deus pode medi-la.
E a Porta, a grande Porta desejada,
Só Deus pode fechá-la,
Pode abri-la.

São vários os degraus; alguns sombrios,

Outros ao sol, na plena luz dos astros,
Com asas de anjos, harpas celestiais.
Alguns, quilhas e mastros
Nas mãos dos vendavais.

Mas tudo são degraus; tudo é fugir
À humana condição.
Degrau após degrau,
Tudo é lenta ascensão.

Senhor, como é possível a descrença,
Imaginar, sequer, que ao fim da Estrada
Se encontre após esta ansiedade imensa
Uma porta fechada
E mais nada?

Fernanda de Castro
(in “Asa do Espaço”)

domingo, 29 de agosto de 2010

«Elegia à Fernanda de Castro» (Texto de Leopoldo Amado)

Fiquei feliz por saber da existência de uma página na Net sobre Fernanda de Castro. Ela mais que merece.
Fui, provavelmente, o primeiro e o único africano a privar-se intensamente com Fernanda de Castro pouco tempo antes da sua morte, numa altura em que ainda concluía a licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa.
Vale talvez a pena que aqui recorde as circunstâncias em que travei conhecimento com Fernanda de Castro: corria o ano de 1985 e já tinha eu decidido encetar um profundo estudo sobre a imagem do Negro na literatura colonial portuguesa, durante o Estado Novo. Leituras aqui, contactos acolá, facilitadas ou recomendadas pelo meu sempre mestre, Prof. João Medina, permitiram-me que tivesse aguçado a curiosidade de conhecer alguns literatos coloniais ainda vivos na altura.
Assim, esses contactos proporcionavam-se-me, cada vez mais, a oportunidades de privar com literatos coloniais vivos. Da longa lista, efectivamente, figurava a incontornável Fernanda de Castro. Conheci-a, efectivamente, em Lisboa, pela mão de uma das suas melhores amigas, no caso, a portentosa escritora Maria Graça Freire (irmã de Natércia Freire), tal como, de resto, o era também a Fernanda de Castro.
Quando se vislumbrou pois a possibilidade de a entrevistar, já sabia, de antemão, que iria estar na presença de uma nonagenária, acamada, mas uma mulher de fibra e com uma extraordinária força interior. Aprazado o dia e a hora, não sem antes me munir de um sugestivo arranjo floral para a oferecer, lá me pus a caminho das imediações do Bairro Alto, onde então vivia Fernanda de Castro. A ansiedade e as expectativas eram mais que muitas, pelo que já no elevador da Glória, imaginava de mil maneiras a figura da escritora, pois as fotografias que dela vira, até então, datavam já de umas valentes décadas.
Quando cheguei a casa de Fernanda de Castro e conduzido depois à sua presença, tornou-se visível para todos os presentes (cerca de quatro ou cinco pessoas) a minha emoção, mas igualmente a alegria contagiante de Fernanda de Castro que, ao ver-me, cumprimentou-me efusivamente, remexendo-se, inclusivamente, da cama, como se dela quisesse erguer-se para me abraçar.
Ainda me lembro das palavras que seguiram à minha calorosa recepção:

- Sabe, Leopoldo, é com enorme prazer que lhe recebo em minha casa. É pena ter de o fazer acamada, mas espero que, por tanto, não se estranhe e que possamos conversar, pelo menos o suficiente. Sabe, estou ultimamente a escrever um último livro que talvez se intitule “Memórias In Extremis”, aliás, é isso que estava justamente a fazer, antes da sua chegada, ditando as coisas a esta minha sobrinha que vai escrevendo o que a digo, pois já não dá para ser eu própria a escrever.

- Mas quero que aqui se sinta à-vontade e que saiba que a Guiné, pelas recordações que possuo das suas gentes, pelo cheiro da terra e por muito mais, está no meu coração, e que a levarei para a minha última morada, pois lá repousa eternamente a minha mãe, que foi lá enterrada.
Enquanto devolvia com palavras simpáticas a calorosa e afectuosa recepção de que fui alvo, Fernanda de Castro prosseguia:

- Sabe, Leopoldo, a sua presença traz-me, profusamente, recordações da minha rica adolescência, vivida em parte na Guiné, em Bolama, onde meu pai chegou de servir como capitão dos portos. E digo-lho, convictamente, que éramos mais fortes. A nossa mística, sabe, ainda há-de consumar-se, pois acredito piamente no mito de um Portugal imperial e no Quinto Império, algo que seja capaz de nos irmanar na fé, na igualdade, na justiça e na crença de um mundo melhor, sem que para isso tenhamos que olhar para a cor da pele ou para a condição social da pessoa humana. É isso, aliás, que procurei plasmar nos três ou quatro livros que escrevi sobre a Guiné e sobre a África.

- O Leopoldo devia ler o meu grande poema intitulado “África Raiz” de que, aliás, lhe vou oferecer um exemplar autografado. Em boa verdade, Leopoldo, África marcou-me profundamente. Leia “O Veneno do Sol” e o “Aventuras de Mariazinha em África” ou o “Mariazinha em África”, livros meus que foram até hoje dos mais vendidos em Portugal, com tantas edições – talvez duas dezenas ou mais – já não consigo lembrar ao certo quantas.

- Sabe, Leopoldo, os dois últimos livros, “Aventuras de Mariazinha em África” e o “Mariazinha em África” são autobiográficos. Procurei neles narrar a inolvidável experiência que a África, a minha África mística, provocou em Mariazinha, de resto, personagem central a quem literariamente emprestei a minha experiência.
Aliás, outros personagens, como o Vicente, também eram reais. O Vicente acabou por vir para Portugal connosco e aqui veio até veio a ser campeão de atletismo e acabou mesmo por se casar com uma portuguesa, de quem teve dois filhos.

Porém, nas semanas e meses que se seguiram, foram de intermitentes mas intensos contactos entre mim e a Fernanda de Castro, resultando tudo numa grande entrevista que a própria fez questão de caucionar e que, pela sua valia e importância, sobretudo pela sua profundidade, darei um dia desses a conhecer ao grande público.
Efectivamente, sobre Fernanda de Castro e a sua produção literária, sobretudo àquela que mais directamente diz respeito à Guiné, muto escrevi, quer em revistas científicas, quer em jornais, aqui e acolá. Fi-lo pela necessidade de dar a conhecer esta grandiloquente escritora que, um dia ou anos, que sejam, tal como Castro Soromenho o fez em relação a Angola, logrou narrar a Guiné com uma extraordinária mundividência e lucidez literárias que, não obstante ter feito recurso a um discurso oficial ou oficioso e ainda ter abordado uma realidade social matizada pela colonização – curiosamente –, os discursos ontológicos, neles subjacentes, não raras vezes, raiam os limites de um humanismo universal e mesmo universalista.
Talvez não fosse despiciendo, antes pelo contrário, a reedição na/para a Guiné de algumas obras de escritora sobre a Guiné, as quais podiam ser lançadas, quiçá, em Bolama, de resto, ilha onde repousa os restos mortais da mãe escritora e, igualmente, torrão que acolheu Fernanda de Castro e que, afinal, inspirou a componente africana da sua abundante e profícua produção literária.
Seria, sem dúvida - afora as politiquices – uma forma sublime e altruísta de, merecidamente, homenagear alguém que, no Mundo lusófono, quer se queira quer não, escreveu das mais belas páginas literárias sobre a Guiné e sobre a África.

Leopoldo Amado
Agosto de 2010.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Reminiscência

"...Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia)
O Senhor Inspector
deu-me a nota mais alta em geografia
e disse gravemente:
- "Continua. Hás-de ser gente..." -


"Ângulo recto, agudo,
cateto, hipotenusa..."
(Já manchara de giz a minha blusa
mas respondia a tudo
e a Professora sorria
enquanto eu papagueava a Geometria)


- "...D.Sancho, o Povoador...
D.Dinis, o Lavrador...
(Tinha então boa memória,
sabia as datas da história...)
1380
1640
1143
em Arcos de Valdevez...
(Muito bem, a pequena é simpática).


- "Vamos lá à gramática." -
"...E, nem, não só, mas também...
conjunções copulativas"
(Eu pensava na alegria
que ia dar a minha mãe,
nas frases admirativas
da velha D.Maria,
a minha primeira mestra:
- Tão novinha e ficou "bem"!" -
e esta suavíssima orquestra
acompanhava, em surdina,
o meu primeiro exame de menina
aplicada, orgulhosa e inteligente...)


- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
fiz os problemas, dividi fracções,
disse as regras das quatro operações
e finalmente
O Senhor Inspector felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara "distinta" sem favor.


Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a claridade
não me cegou.
As estrelas, fitei-as como iguais.
Melhor: como rivais,
e  a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas amigas!)


Pouco depois, em casa,
a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à Terra, ao Céu, ao Mar, ao Rio:
- "O mãe, eu já sei tudo!"
No seu olhar tranquilo, de veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro, cada dia:
"- Ó mãe, eu não sei nada!"
Fernanda de Castro
Trinta e nove poemas (1941)

quarta-feira, 28 de julho de 2010

"Poesia in progress"

Leitura de poemas de Fernanda de Castro
dia 29 no Café Progresso (Porto) pelas 21:30

[clique na imagem para ler]


Para Pascoaes os versos de Fernanda de Castro continham "o que de mais eterno há na poesia". E Pessoa, José Gomes Ferreira, Ary dos Santos, Natália Correia, Cecília Meireles, Drummond de Andrade, Pirandello ou Mircea Eliade foram algumas das figuras que conviveram com esta poetisa, romancista, dramaturga, "a primeira neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema...", - nas palavras de David Mourão-Ferreira.

Fernanda de Castro encarnou na poesia a grandeza de "um doloroso, humano coração", glorificando a vida em todas as suas facetas: o sol, o amor, a alegria dos dias felizes, a dor amarga, a ânsia de voar para um longínquo lugar de luz e paz nos dias de infinita solidão.

Não é de perder esta rara oportunidade de assistirmos a uma sessão de poesia sobre Fernanda de Castro no próximo dia 29 no Café Progresso pelas 21,30 com leitura de poemas por Maria de Lourdes dos Anjos, Nuno Meireles e Celeste Pereira e acompanhamento musical pelo Grupo de Cavaquinhos da Associação Recreativa de Mafamude.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Um texto inédito de Fernanda de Castro

"[...] A missão dos poetas foi sempre conduzir a imaginação dos Homens para além das fronteiras da matéria, arrancando à forma a Ideia que absolve a acção."

"O que é a Poesia?" in Alma, Sonho, Poesia, p. 14 
(Edição Fundação António Quadros, 2010)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Fernanda de Castro e Ary dos Santos

"Um dia, em 1963, o Alexandre Ribeirinho, director do Teatro Universitário, apresentou José Carlos a Fernanda de Castro. A empatia entre os dois foi imediata e desde logo surgiu o tratamento de mãezinha e de Tia Fernanda que passou a adoptar para com a grande senhora: “24 horas depois de me ter conhecido queria que eu fosse a mãe que ele já não tinha”. Esse primeiro encontro deu-se no Algarve, em Alporchinhos, onde a escritora e autora tinha casa. José Carlos declamou o seu poema dramático Azul Existe, que hoje está incrível e misteriosamente eclipsado. Mesmo o ZCAS poucas vezes o mencionava e não o incluiu, nem excertos, em qualquer uma das suas colectâneas ou antologias. Também não consta da sua obra postumamente publicada. Mas então, nesse encontro com Fernanda de Castro, foi o clic definitivo para um período fecundo. Uma roda de novas relações, de que fazia parte Natália Correia e muitos outros, abriu-lhe horizontes e possibilidades que vieram a ser mais alargadas ainda com a frequência dos serões em casa de Fernanda de Castro, na Calçada dos Caetanos, ao Bairro Alto.

José Carlos e o seu irmão Diogo fizeram parte da trupe e da plêiade que, sob a direcção de Fernanda de Castro, com a coordenação e montagem de Alexandre Ribeirinho, José Francisco Azevedo, Mário Cardoso Pereira, Jorge Cenáculo e Edith Arvelos, incluía Manuela Machado, Catarina Avelar, Norberto Barroca e Maria Germana Tânger, tendo-se constituído como Teatro de Câmara António Ferro!

Fernanda de Castro é reveladora, ao referir-se a um ensaio para um dos serões seguintes, em que Zé Carlos tinha de declamar uns versos dela: “Desfolha-se em badaladas/ o velho sino de bronze./ As senhoras abastadas/ vão sempre á missa das onze/ (D.Aurora de mantilha,/ D.Francisca de véu,/ D.Gertrudes e a filha,/ de luvas e de chapéu.)”(…). Ao vê-lo, Fernanda de Castro desatou a rir e a cena resultou indelével na sua memória: “Jamais poderei esquecer a cara, os gestos, os ademanes, os olhares marotos e o riso contagioso do José Carlos ao falar da D.Aurora de mantilha, da D.Francisca de véu, da D.Gertrudes e a filha de luvas e de chapéu. Contado isto não tem talvez graça nenhuma, mas quem conheceu o Zé Carlos, tinha então 24 anos, compreende perfeitamente o que eu quero dizer e o efeito hilariante da sua recitação”[...]

A partir daí e até ao fim da vida manteve-se a amizade e, mesmo, cumplicidade, entre os dois escritores. O suicídio do Diogo, seu irmão, em 11 de Março de 1965, tinha 21 anos, foi um momento de débacle. ZCAS tinha-lhe dedicado “A Liturgia do Sangue”. Acompanhavam-se em trabalho e em noitadas, Diogo tinha participado também no Teatro de Câmara António Ferro. Irmão solidário e irmão-cúmplice, este desgosto ficar-lhe-ia indelével. Foi uma sombra, feita de profundo remorso e auto culpabilização, que nunca mais havia de o abandonar na vida. E que, sempre que pegava num gin, de algum modo evocava. Sigamos Fernanda de Castro: “O José Carlos Ary dos Santos era um amigo tão íntimo da casa que, durante certos períodos, como por exemplo o do Teatro de Câmara António Ferro, que ele viu nascer na década de 60, e mais tarde nos dois períodos que antecederam os dois Festivais do Algarve, foi um dos meus mais eficientes colaboradores, chegando a passar alguns meses na minha casa de Alporchinhos com o meu irmão Francisco, a Inês Guerreiro e a Edith Arvelos, a equipa que tão entusiasticamente me ajudou a levar a cabo estes empreendimentos.” “Foi um colaborador precioso, honestíssimo trabalhador e ainda por cima alegre, entusiasta e cheio de força criadora. Era um bonito rapaz, afectuoso, que me dizia muitas vezes: - Depois da morte do Diogo, a Tia Fernanda é a pessoa de quem eu mais gosto no mundo.”.

Texto de Manuel Cardoso (2009) na íntegra aqui.

[Manuel Cardoso nasceu em Macedo de Cavaleiros em 1958. Publicou Glossário de Equídeos (1999), Macedo Rua a Rua (2005) Um Tiro Na Bruma (2007), O Segredo Da Fonte Queimada (2009), entre outras obras.]

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Portuguesas com História - Séc. XX

Livro de Anabela Natário sobre as vidas de Fernanda de Castro, Isabel Aboim Inglês, Irmã Lúcia, Beatriz Costa, Virgínia Rau, Cesina Bermudes, Maria Helena Vieira da Silva, Carolina Loff, Helena Sá e Costa, Amália Rodrigues, Catarina Eufémia, Natália Correia, Maria de Lurdes Pintasilgo, Maluda e muitas outras figuras femininas do Portugal do século XX. Edição Temas e Debates, 2009.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Cecília Meireles sobre Fernanda de Castro

"Tenho uma amiga esperando-me no Estoril. É a poetisa Fernanda de Castro. [...] Uma criatura encantadora, [...] com o mesmo tóxico que eu tenho no sangue do espírito: deslumbramento pela selva e pelo oceano, loucura pelo sol [...], fome do infinito."

De uma carta de Cecília Meireles a Fernando de Azevedo, in Cecília em Portugal (Iluminuras, 2001) de Leila V.B. Gouvêa

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Menina Perdida

Menina perdida
no bosque da vida.


Os olhos desertos,
os gestos errados,
os passos incertos,
os sonhos cansados.

Menina perdida,
desaparecida
nos longos caminhos
de pedras e espinhos.
Cabelos molhados,
pés nús, alma exangue,
vestidos rasgados,
mãos frias, em sangue.

Menina encontrada
na berma da estrada.
Andava perdida
mas já foi achada,
de branco vestida,
de branco calçada.

Menina perdida
no bosque da vida.

Fernanda de Castro
Poesia I (1969) pp.163-164

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Modas e Bordados, No. 1617, Fevereiro 1943 - 3

Sobre a peça Pedra no Lago de Fernanda de Castro, em cena no teatro da Trindade. Os lucros reverteram a favor da Associação Nacional de Parques Infantis, fundada e dirigida pela poetisa.

O Aterro


Fernanda de Castro, Contemporânea nº10 (1920), via Hemeroteca Digital

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Meditação

Esta noite foi longa. Longa e vária
de segredo e mistério. Noite densa.
Invisível, tirânica presença
povoou a minha noite solitária.

Ah, a insónia com longas mãos de opala
e fundos olhos cegos!
E o pensamento à solta como o vento
 - montes e  vales, oceanos, pegos!...
e a cabeça que estala,
a cabeça que estala!

Pensar! Como se o humano entendimento
para tanto chegasse! Meditar
em sofás de ridículas saletas
no sábio movimento dos planetas.
Filosofar, oh irrisão,
enquanto mal ou bem
se faz a digestão,
sobre a morte, o devir,
o mistério do ser e do não ser,
e tudo isto a sério, sem sorrir,
como se enfim tudo estivesse dito:
o Caos, a Criação, Deus e o Infinito.
E nem sequer escondes por decoro,
triste mortal com asas de besouro,
ó depenado arcanjo,
que te crês Deus ou pelo menos anjo.

Esta noite foi longa. Longa em mim,
auroral e lunar, sem princípio nem fim.
Meditação
inútil sobre as grades da prisão.
Meditação sobre a existência,
(Existirá ou não?,
ou será tudo simples aparência,
colectiva ilusão?)

Esta noite foi longa. Longa e bela,
calma e branca vigília.
Um fio de luar entrou pela janela
e um doce cheiro a tília.
Abstracções metafísicas, problemas?
O firmamento era um brocado azul bordado a ouro,
fabuloso tesouro
de incomparáveis gemas.
Tudo era silêncio, quietação.
Compreendi então
que o essencial não era compreender
mas sentir e aceitar
a vida e a morte, o bem e o mal,
a flor, o luar
e a ignorância total.
Não mais filosofias de vaidoso esteta
e não mais este orgulho: sou poeta.
Razão
tem-na, talvez, o louco sem razão,
tem-na o monge na cela,
o cego de nascença, a pedra, o sapo,
a boneca de trapo.
O mais é tudo igual: poetas, corifeus...

Esta noite foi longa. Longa e bela.
Encontrei Deus.

Fernanda de Castro
(Exílio, Livraria Bertrand, 1952)

Mulher Perdida

Boneca partida,
que aconteceu
à tua vida?


Ave caída,
ninguém te disse
que é bela a vida?


Quem te mandou,
asa ferida,
brincar com a vida?


E hoje, perdida,
quem te há-de achar?
A morte ou a vida?

Fernanda de Castro
(Exílio, Livraria Bertrand, 1952)

sábado, 20 de março de 2010

Carmen Feito diz poema de Fernanda de Castro



Alegria

De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho...,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura

duma nova amargura...
De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade...
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte...
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.

Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.

Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir
o tédio,

Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a
um vício.

Alegria!
Alegria!
Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!

Berta Singerman diz poema de Fernanda de Castro



Poema da Maternidade

Pode lá ser! Não quero, não consinto!
Tudo em mim se revolta: a carne, o instinto,
A minha mocidade, o meu amor,
A minha vida em flor!

É mentira! É mentira!
Se o meu filho respira,
Se o meu corpo consente,
Covardemente,
A minh'alma não quer!
Eu não quero ser mãe! Basta-me ser mulher!
Basta-me ser feliz!
E o meu instinto diz:
— «Acabou-se! Acabou-se! Agora renuncia:
Começa a tua noite: acabou-se o teu dia!
Tens vinte anos? Embora! A tua mocidade
Perdeu chama e calor, perdeu a própria idade.
Resigna-te. És mulher! Foi Deus que assim o quis.
Já foste flor: agora és só raiz.» —
Não pode ser! É injusta a minha sorte!
Não quero dar vida a quem me traz a morte!
O meu destino há-de ter outro brilho!
Vida, quero viver! E morro, morro...

Filho!
Pode lá ser, Jesus! Eu não mereço tanto!
Filho da minha dor, eu já não choro — canto!
Filho que Deus me deu! Porquê, Senhor,
Há só uma palavra: Amor, Amor, Amor?!
Dai-me outra voz que nunca tenha dito
Coisas más, coisas vis... e que saiba a infinito...
Dai-me outro coração, mais puro, mais profundo,
Que o meu já se quebrou de encontro ao mundo...
Dai-me outro olhar que nunca tenha olhado,
Que não tenha presente nem passado...
Dai-me outras mãos, que as minhas já tocaram
A vida e a morte... o bem e o mal... e já pecaram...

Filho, por que seria? Ao vires para mim,
Mudaste num jardim
Os espinhos da minha carne triste...
E como conseguiste
Dar uma cor de sol às horas mais sombrias?

Meu menino, dorme, dorme,
E deixa-me cantar
Para afastar
A vida, um papão enorme...
Meu menino, dorme, dorme...

Vamos agora brincar...
Que brinquedo, meu menino?
O mar, o céu, esta rua?
Já te dei o meu destino,
Posso bem dar-te a Lua.
Toma um navio, um cavalo,
Toma agora o mar sem fundo...
Ainda achas pouco? Deixá-lo!
Se quiseres, dou-te o mundo!
Mas por que não vens brincar?
Por que preferes chorar?
Jesus! Que tem o meu filho?
Que vida estranha no brilho
Do seu olhar?
Uma vida inquieta e obscura
Anda a queimar-lhe a frescura ...
Ainda hoje, meu filho, não sorriste
E o teu olhar é triste...
Cheiras a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
O seu hálito queima, o seu olhar escalda...
Ele que tinha um olhar de estrela ou de esmeralda
E um perfume de flor,
Agora tem na boca um amargo sabor
E cheira a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
Tirai-me dos olhos toda a luz!
Livrai-me da blasfémia... Deus! Jesus!
Pois se o meu filho morre, se agoniza,
Por que há flores no chão que ele não pisa?
Se num coval o hei-de pôr, de rastros,
Por que estarão tão altos os astros?
Senhor, eu sou culpada… Eu sei o que é o pecado…
Mas ele, meu Jesus, ainda não tem passado...
Para mim, não há mal que não aceite,
Mas ele, ainda tão perto do teu céu!
A sua vida era beber-me leite...
No olhar com que me olhava tinha um véu
De neblinas, de névoas de outras vidas...
Às vezes, tinha as pálpebras descidas
E punha-se a chorar no meu regaço
Com saudades, talvez, do céu, do espaço...
O meu filho tem febre!
Por que andam a cantar pelos caminhos?
Por que há berços e ninhos?
Vida! O meu filho era belo,
O meu filho era forte!
Vida, que mãe és tu? Defende-me da morte!
Vida! Vida! Vida!

Louvado seja Deus! A morte foi-se embora!
Já não tens febre agora!
Louvado seja Deus! O meu menino vive,
Este menino, o meu, que só eu tive!

E pude blasfemar!
E o meu menino chora, e eu posso já cantar!
E o meu menino canta e eu posso já chorar!
O meu menino vive e toda a vida canta,
Toda a terra é uma fresca e sonora garganta!
Que toda a gente o saiba e toda a terra o veja!
Louvado seja Deus!
Louvado seja!

quinta-feira, 18 de março de 2010

ALMA, SONHO, POESIA

Apresentação do livro Alma, Sonho, Poesia, selecção de poemas, é já no Domingo, dia 21 de Março, às 15h00, aqui. Edição da Fundação António Quadros.


imagem retirada daqui

quarta-feira, 3 de março de 2010

Ilha da grande solidão

"[...] a génese da personalidade de Fernanda de Castro dá-se num ambiente dominado claramente pelo feminino - mulheres que, de maneiras diferentes, são fortes e determinantes no prosseguimento da vida doméstica, ou que simplesmente estão presentes e compõem, com a sua presença e a sua sensibilidade, um ambiende cor-de-rosa (como a casa de família). Tal facto gera nela uma reacção imediata e uma acção a longo prazo: a primeira é a de ser uma «Maria rapaz», um «cabrito montês» que sempre sonhou com aventuras em cavalos de papelão ou em aventuras pela quinta liderando irmão e primo, mais que com delicados chazinhos para as bonecas. A longo prazo determinou, pouco depois da morte da mãe, que Fernanda de Castro se assumisse como a nova dona de casa, a quem competia gerir o ambiente familiar, e que por toda a vida - em tudo aquilo que fez - fosse profundamente feminina, num mundo de homens. Entre um e outro módulo, está a verdadeira Fernanda de Castro - aquela que se refugiava com os seus livros e os seus papéis no velho sótão, no isolamento e na solidão em que afinal, apesar de sempre e tão bem rodeada, viveu toda a vida. Fosse um limbo de educação e geração, de pudor de se revelar selvaticamente esse cavalo a galopar ou esse cabrito a dar coices, fosse um medo qualquer do tempo e do meio em que viveu, a verdade é que a distância a que manteve sempre todas as pessoas, mesmo as mais chegadas, foram fortificando essa sua «Ilha da Grande Solidão»."

Francisco de Almeida Dias, O Diálogo das Artes no Feminino: Fernanda de Castro e Sarah Afonso, duas mulheres de grandes maridos. (2006)

domingo, 3 de janeiro de 2010

Tempestuoso, opaco, mineral

"O céu está hoje azul como no primeiro dia da Criação. Tudo é verde, até as piteiras, até os musgos que são cinzentos. As estevas começam a vestir-se de branco, os favais sangram as primeiras papoilas, centenas de pequenas borboletas brancas dançam ao sol as suas vidazinhas efémeras. E, contudo, há mau tempo nos meus olhos, que estão hoje cinzentos, dum cinzento tempestuoso, opaco, mineral. (...)"
Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória I, p. 10