segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O encontro de António Rosado com Fernanda de Castro


António Quadros Ferro - Imediatamente antes de viajar até França, conviveu com Fernanda de Castro, para quem tocou piano em troca de umas aulas de Francês. Do que é que se lembra desses encontros?

António Rosado - Conheci Fernanda de Castro, de quem guardo uma memória luminosa pela estima que nutro: lembro-me de uma senhora superiormente inteligente com grande espírito e sempre agradável, apesar de acamada. De facto, fui muitas vezes conversar com ela em francês, a pedido de uma amiga, a Maria Luísa Garin que era simultaneamente amiga da minha professora de piano, Gilberta Paiva. Apesar de ter tido francês no liceu, foi importante para desenvolver a conversação e assim passávamos parte da tarde em conversas dos mais variados temas. Não poucas vezes ela perguntava-me pelos meus estudos e pedia-me amavelmente se queria tocar piano, umas vezes sozinha, outras com amigas que como sabe, passavam para beber um chá. Falava-se de música, do país, eventualmente de política e gostava de contar factos do seu passado. Enfim, como imagina, guardo as melhores recordações dessa época.

*Adaptação livre de uma conversa com António Rosado em Novembro de 2011

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António Rosado iniciou os seus estudos musicais aos três anos de idade com o pai. No Conservatório Nacional de Lisboa, na classe de Gilberta Paiva, formou-se com a classificação máxima. Aos dezasseis anos foi para Paris como bolseiro do Governo Francês, da Fundação Gulbenkian e da Secretaria de Estado da Cultura. Aí encontra Aldo Ciccolini de quem vem a ser discípulo no Conservatório Nacional Superior de Música e nos cursos de aperfeiçoamento em Siena e na Academia de Biella em Itália. Continue a ler aqui.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Rita Ferro sobre a avó Fernanda de Castro

"Foi a primeira mulher - entre três outras - a tirar a carta de condução em Portugal . Foi a primeira mulher a ganhar o prémio Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências de Lisboa . Foi a primeira portuguesa a fundar um Teatro de Câmara. Foi a sócia número 68 da Associação Portuguesa de Escritores. Foi sócia número 1 da Sociedade Portuguesa de Autores. Foi Sócia de Honra do Círculo Eça de Queiroz . Foi autora de um livro de introdução à Botânica, ciência que sempre a fascinou, intitulado A Vida Maravilhosa das Plantas. Tinha uma das mais notáveis colecções de conchas e búzios, recolhidos por ela mesmo em África e na Ilha de Faro. Foi a mentora, fundadora e directora da Associação dos Parques Infantis . Como embaixatriz de Portugal em Berna e em Roma, são lembrados com saudade o seu requinte a receber, a sua paixão pela gastronomia e os seus apreciadíssimos dotes culinários. É autora de um livro de culinária intitulado Cem Receitas Sem Carne, sob o pseudónimo de Teresa Diniz, que atendia às dificuldades de abastecimento provocadas pela Guerra . Foi exímia executante de tapetes de Arraiolos . São conhecidos os seus bordados sobre seda e os seus quadros de flores e plantas naturais, que ela mesmo colhia, prensava e classificava . Foi co-proprietária com Mariana Avilez de um hotel de Cascais, o Solar D. Carlos . Foi fundadora e redactora da revista Bem Viver, que dirigiu durante os dois anos da sua publicação e funcionou como escola de gosto, defendendo o ambiente, a harmonia e o bem-estar em casa e na vida quotidiana. Organizou o I e II Festivais do Algarve, durante dois anos consecutivos, inaugurados no Castelo de Ofir, com um recital de poesia árabe e portuguesa, no qual tomaram parte dois príncipes marroquinos com os seus trajes de cerimónia . Organizou, em moldes inéditos, duas grandes festas populares no Jardim da Estrela, em Lisboa, durante a quadra dos santos populares, com enorme impacto junto do público. Participou na Semana de Arte Moderna, em S. Paulo Decorou os 40 primeiros apartamentos de Vilamoura, no Algarve . Publicou 14 livros de poesia, 5 romances (um deles adaptado a uma telenovela para a RTP), publicou 2 peças de teatro, 7 livros para crianças, 2 volumes de memórias, 1 livro de epístolas, 1 livro de introdução à Botânica, 1 livro de receitas, num total de 33 obras publicadas Traduziu 11 obras importantes . Editou 1 revista . Escreveu letras para cinema, canção e fado, argumentos para filmes e bailados . Editou 1 disco de canções infantis . Compôs música. Publicou centenas de artigos e crónicas, deu conferências e recitais no Continente e nas Ilhas, no Brasil, na Suiça, em Paris e em África. Os seus livros «Mariazinha em África» e novas «Aventuras de Mariazinha» fizeram as delícias de uma geração, mas depois foram considerados «colonialistas» . As suas Memórias, em dois volumes, foram best-sellers à epoca, e todos deveriam lê-las: é um testemunho precioso de um século que sofreu quatro guerras. Esteve acamada durante 13 anos, e recebia os amigos num quarto carregado de flores naturais e um piano, onde alguns músicos reconhecidos lhe deram a alegria de tocar para ela . Servia um chá às quintas-feiras, onde os amigos apareciam sem convite e se jogava Trivial Pursuit . Era competitiva: irritava-se quando não acertava. A Amália aparecia frequentemente. Escreveu 4 livros depois de adoecer, e ainda 1 romance de 400 páginas depois de cegar, ditando. Aos 92 anos, dois antes de morrer, enviou à TVI, então dirigida pelo Engº Roberto Carneiro, duas propostas suas para programas de TV. Detestava a política, mas foi amiga pessoal de Salazar e nunca hipotecou a sua honra, negando-o. Pagou, inteira e serena, o preço do esquecimento . Viu morrer o filho e duas netas sem verter uma lágrima - para que o seu desgosto não sobrecarregasse o nosso - e nem por uma vez a ouviram queixar-se. Durante a guerra, tanto ela como o meu avô arranjaram dezenas de passaportes para judeus foragidos, acolhendo alguns deles em casa. Tinha dois amigos íntimos: a Natália e o Ary. Em 74, cada um seguiu o seu caminho: o Ary seguiu para o PC e a Natália para o PPD. Durante muitos anos não a visitaram. Nunca os julgou. Um certo dia voltaram, desculpando-se, ao que ela respondeu «não tem importância, eu compreendo». Contrariaram a ordem natural das coisas partindo ambos antes dela. Sofreu pavorosamente não ter podido comparecer ao funeral de ambos, assim com ao de meu Pai. Lisboa tem um jardim com o seu nome."
Rita Ferro

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Fleuma

‎"Pensando na calma, na fleuma, no civismo dos Suíços, que por vezes toca as raias da mania, lembro-me agora duma frase da marquesa de Quintanar, que acabava de passar seis meses na Suíça, no sanatório, com a filha doente. De regresso a Madrid, ao descer do avião, explodiu:
- Caramba! Já se pode cuspir no chão!
E tirando da algibeira uns poucos papéis de rebuçados amarrotados, espalhou-os aos quatro ventos, num gesto vingativo que muito a aliviou."

Fernanda de Castro, “Ao Fim da Memória II 1939 – 1987”