segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Irmãs Meireles interpretam "Um grande amor" de Fernanda de Castro.


"Vira da Desfolhada" na versão de Fernanda de Castro, no filme «As Pupilas do Senhor Reitor»


«As Pupilas do senhor Reitor», Leitão de Barros (1935)

ELE: Roubei-te um beijo Maria/ Desde esse dia/morra se minto/ por uma coisa tão pouca/ pica-me a boca / não sei que sinto/ELA: Mal haja o ladrão de estrada/ te renego, cruzes, figas/ beijo dado sabe a rosas/ mas roubado sabe a urtigas/ CÔRO: Vira, vira, virou/ vira e torna a virar/ Roda, roda, rodou/ Cada qual com seu par/ ELA: A chita da minha blusa/ já não se usa/ foge demónio/ Não quero a tua riqueza/ quero a pobreza/ do meu António/ ELE: Fazes mal ó moreninha/ que o amor de marinheiro/ sobe e desce como as ondas/ é como agulha em palheiro/ CÔRO: Vira, vira, virou/ vira e torna a virar/ Roda, roda, rodou/ Cada qual com seu par/ ELE: Adeus, amor vai-te embora/ deita-me fora/ não tenhas dó/ A roseira mais bravia/ não tem Maria/ uma rosa só.

Teresa Salgueiro interpreta "Vira da Desfolhada" na versão de Fernanda de Castro

Fernanda de Castro, Ary dos Santos e Inês Guerreiro


I Festival do Algarve (1964)

Descerramento da placa comemorativa

Amália Rodrigues e Fernanda de Castro

No I Festival do Algarve, org. de Fernanda de Castro (1964)

Fernanda de Castro e Amália Rodrigues


"É claro que não tenho tempo nem espaço para contar demoradamente todos os números que constituíram este Festival. Não posso, no entanto, deixar de me referir, embora ao de leve, a alguns dos seus pontos mais altos. Estou a pensar por exemplo na Festa da Lua, em Armação de Pêra: primeiro, uma visita às furnas, iluminadas com archotes, onde vivem centenas ou talvez milhares de pombas-bravas; no mar, todos os barcos de Armação engalanados e iluminados; no meio do areal, um barco colorido, rodeado por uma guarda de honra de pescadores, de remos ao alto. E, sobre esse barco, pálida, sob a pálida brancura da Lua, Amália, sozinha, de pé, com um vestido negro que a tornava ainda mais branca. Na praia, coalhada de gente, um silêncio mortal. Começaram a ouvir-se as guitarras escondidas na sombra e a voz de Amália, vibrante, pura como um cristal, abalou o silêncio, a noite, a própria Lua que a iluminava. Havia uma leve aragem e eu disse à Jacqueline, que tinha vindo passar umas semanas a Alporchinhos:
Dommage qu’il fasse un peu froid.
Ao nosso lado uma francesa, elegante e muito bela, voltou-se para mim, sorriu e disse:
Qu’est-ce que ça fait, madame! C’est beau, c’est terrivelmente beau!
Amália cantou, cantou, cantou durante duas horas, e depois, quebrado o fascínio, andou de grupo em grupo na praia, onde tínhamos preparado, sobre a areia, uma ceia bem típica: «vilas» de amêijoas, ostras e polvos grelhados, azeitonas britadas com orégãos, pão de trigo, queijos de Serpa, vinho da Lagoa e de Portimão, figos e amêndoas, morgadinhos e dom-rodrigos, aguardente de medronho, etc., etc., tudo incluído no bilhete de entrada no grande recinto reservado da praia. Foi nessa ceia que o Larbi Jacoubi, visivelmente impressionado com Amália, tirou do dedo um anel que lhe ofereceu com estas palavras:
– Como vê, este anel tem como adorno um olho de boneca. Tenho outro igual em Tânger, com o outro olho da mesma boneca. Use este, que eu vou usar o outro, e assim ficaremos ligados até ao fim da vida.
Não sei por onde andará a estas horas o anel do Larbi. O da Amália, na melhor das hipóteses, está certamente esquecido, abandonado, no fundo duma dessas gavetas que se abrem de anos a anos e que cheiram a passado, a coisa morta, a velhos perfumes que foram mas que já não são.
(...) Limitar-me-ei, pois, a falar dos dois pontos mais altos desta nova série de espectáculos. Amália cantava em Albufeira sobre um estrado de madeira, numa grande esplanada na praia. Estava um pouco de vento e havia humidade no ar. Quando Amália chegou a meio da tarde, convidei-a para tomar chá no hotel e ela disse-nos, à Inês e a mim, que estava preocupada com a sua garganta, pois, além de não gostar de cantar ao ar livre, a tarde não fazia prever de modo algum uma daquelas noites mornas tão frequentes no Algarve. A certa altura a Inês afastou-se e nós ficámos sozinhas a saborear o nosso chá numa pequena sala confortável e deserta. Conversámos então um pouco. Em dado momento perguntei-lhe: 
 – O que pensa, Amália, quando lá fora, diante duma plateia cosmopolita, é alvo de tão grandes e tão espontâneas ovações? Ela calou-se um momento e respondeu com um ar de profunda sinceridade: 
 – Penso que nada daquilo é comigo, que eu estou ali, sim, mas que não sou eu, que estou longe, muito longe, e que estou a cantar, a agradecer e a sorrir como se fosse outra pessoa, como se de qualquer modo estivesse a receber aplausos que não me eram destinados. A sinceridade da sua voz comoveu-me. Aliás, Amália surpreende-me sempre. Um dia, tendo cortado os cabelos, que usava então pelos ombros, não pude esconder a minha pena e exclamei: 
 – Oh, Amália, os seus cabelos! Que pena! Ela sorriu e perguntou-me: 
 – Estou horrível, não estou? – E acrescentou: – E agora primeiro que cresçam... Sabe como lhes chamo? «Crime e Castigo»! 
Disse há pouco que a Inês nos deixara, mas não disse porquê. Vendo a nossa preocupação por causa do tempo, sabem o que ela fez? Foi ter com um velho marinheiro e com o auxílio dele montou no estrado uma vela de traineira, que, logo que Amália começou a cantar, se ergueu como se o estrado fosse de facto um barco a fazer-se ao mar. Este efeito de cena era duma tal beleza que foi recebido com uma enorme ovação. Estavam centenas de pessoas presentes, sobretudo estrangeiros, e Amália, assim protegida do vento, pôde cantar, duma maneira fabulosa, sem prejuízo da sua prodigiosa garganta. Se a vida fosse uma estrada larga, uma recta do princípio ao fim, a memória poderia acompanhá-la sem solavancos, sem desvios, sem intermitências. A vida porém é um caminho sinuoso cheio de atalhos, de desvios, de encruzilhadas, onde a memória às vezes se perde e onde é preciso persegui-la até reencontrarmos o fio condutor. (...)"

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória, vol. II

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Testamento

Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo;
caixão de tábuas, derradeira casa,
onde repousarei, frágil abrigo,
até me libertar num golpe de asa.
Então, quando estiver a sós comigo,
que ninguém chore porque o choro atrasa,
mas que alguém, se quiser, num gesto amigo,
ponha roseiras sobre a campa rasa.
Será medo o que sinto? Não é medo.
Serei, não serei digna do Segredo?
Ah, meu Deus, para lá das nebulosas,
Mereça ou não a expiação, a dor,
entrego-Te a minha alma sem temor.
O que resta, o que sobrar, é para as rosas.

Fernanda de Castro

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014