Poemas

[em construção]


Orgulho
Nada quero da vida ambicionada
por quantos me rodeiam nesta vida
Nem riqueza, nem glória desmedida
Perguntam-me o que tenho: estou cansada.
Vencida de cabeça levantada,
orgulho sem limites de vencida.
Eu sou bem criada, a bem nascida,
a que deu tudo e nunca pediu nada.
Nada espero da vida nem da morte.
Vergada ao peso de uma alma forte,
cá vou calando angústias e cansaços,
mas que longos, às vezes, são os dias
e como pesam duas mãos vazias
e que desertos cabem nos meus braços!

Esta dor que me faz bem

As coisas falam comigo
uma linguagem secreta
que é minha, de mais ninguém.
Quem sente este cheiro antigo,
o cheiro da mala preta,
que era tua, minha mãe?

Este cheiro de além-vida
e de indizível tristeza,
do tempo morto, esquecido...
Tão desbotada e puída
aquela fita escocesa
que enfeitava o teu vestido.

Fala comigo e conversa,
na linguagem que eu entendo,
a tua velha gaveta,
a vida nela dispersa
chega à cama onde me estendo
num perfume de violeta.

Vejo as tuas jóias falsas
que usavas todos os dias,
do princípio ao fim do ano,
e ainda oiço as tuas valsas,
minha mãe, e as melodias
que cantavas ao piano.

Vejo brancos, decotados,
os teus sapatos de baile,
um broche em forma de lira,
saia aos folhos engomados
e sobre o vestido um xaile,
um xaile de Caxemira.

Quantas voltas deu na vida
este álbum de retratos,
de veludo cor de tília?
Gente outrora conhecida,
quem lhe deu tantos maus tratos?
Serão todos da família?

Ai, vou fechar na gaveta
a lembrança dolorosa
dos teus laços de cetim,
dos teus ramos de violeta,
do leque de seda rosa
com varetas de marfim.

As coisas falam comigo
numa linguagem secreta,
que é minha, de mais ninguém.
Quero esquecer, não consigo.
Vou guardar na mala preta
esta dor que me faz bem.

Fernanda de Castro 
em E Eu, Saudosa, Saudosa

Distância

Não vás para tão longe!
Vem sentar-te
Aqui na chaise-longue, ao pé de mim...
Tenho o desejo doido de contar-te
Estas saudades que não tinham fim.


Não vás para tão longe;
Quero ver
Se ainda sabes olhar-me como d'antes,
E se nas tuas mãos acariciantes,
Inda existe o perfume de que eu gosto.


Não vás para tão longe!
Tenho medo
Do silêncio pesado d'esta sala...
Como soluça o vento no arvoredo!
E a tua voz, amor, como se cala!


Não vás para tão longe!
Antigamente,
Era sempre demais o curto espaço
Que havia entre nós dois...
Agora, um embaraço,
Hesitas e depois,
Com um gesto de tédio e de cansaço,
Achas inconveniente
O meu abraço.


Não vás para tão longe!
Fica. Inda é tão cedo!
O vento continua a fustigar
Os ramos sofredores do arvoredo,
E eu ponho-me a pensar
E tenho medo!


Não vás para tão longe!
Na sombra impenetrada,
Como se agita e se debate o vento!...
Paira nas velhas ruínas do convento


Que além se avista,
A alma melancólica d'um monge
Que a vida arremessou àquela crista...


Céu apagado, negro, pessimista,
E tu sempre mais longe!...

Fernanda de Castro,
in "Antemanhã"
Os anos são degraus

Os anos são degraus, a vida a escada.
Longa ou curta, só Deus pode medi-la.
E a Porta, a grande Porta desejada,
Só Deus pode fechá-la,
Pode abri-la.

São vários os degraus; alguns sombrios,
Outros ao sol, na plena luz dos astros,
Com asas de anjos, harpas celestiais.
Alguns, quilhas e mastros

Nas mãos dos vendavais.

Mas tudo são degraus; tudo é fugir
À humana condição.
Degrau após degrau,
Tudo é lenta ascensão.

Senhor, como é possível a descrença,
Imaginar, sequer, que ao fim da Estrada
Se encontre após esta ansiedade imensa
Uma porta fechada
E mais nada?
Fernanda de Castro
Asa no Espaço (1955)


Meditação
Esta noite foi longa. Longa e vária
de segredo e mistério. Noite densa.
Invisível, tirânica presença
povoou a minha noite solitária.

Ah, a insónia com longas mãos de opala
e fundos olhos cegos!
E o pensamento à solta como o vento
 - montes e  vales, oceanos, pegos!...
e a cabeça que estala,
a cabeça que estala!

Pensar! Como se o humano entendimento
para tanto chegasse! Meditar
em sofás de ridículas saletas
no sábio movimento dos planetas.
Filosofar, oh irrisão,
enquanto mal ou bem
se faz a digestão,
sobre a morte, o devir,
o mistério do ser e do não ser,
e tudo isto a sério, sem sorrir,
como se enfim tudo estivesse dito:
o Caos, a Criação, Deus e o Infinito.
E nem sequer escondes por decoro,
triste mortal com asas de besouro,
ó depenado arcanjo,
que te crês Deus ou pelo menos anjo.

Esta noite foi longa. Longa em mim,
auroral e lunar, sem princípio nem fim.
Meditação
inútil sobre as grades da prisão.
Meditação sobre a existência,
(Existirá ou não?,
ou será tudo simples aparência,
colectiva ilusão?)

Esta noite foi longa. Longa e bela,
calma e branca vigília.
Um fio de luar entrou pela janela
e um doce cheiro a tília.
Abstracções metafísicas, problemas?
O firmamento era um brocado azul bordado a ouro,
fabuloso tesouro
de incomparáveis gemas.
Tudo era silêncio, quietação.
Compreendi então
que o essencial não era compreender
mas sentir e aceitar
a vida e a morte, o bem e o mal,
a flor, o luar
e a ignorância total.
Não mais filosofias de vaidoso esteta
e não mais este orgulho: sou poeta.
Razão
tem-na, talvez, o louco sem razão,
tem-na o monge na cela,
o cego de nascença, a pedra, o sapo,
a boneca de trapo.
O mais é tudo igual: poetas, corifeus...

Esta noite foi longa. Longa e bela.
Encontrei Deus.

Fernanda de Castro
Exílio (1952)

Menina Perdida
Menina perdida
no bosque da vida.


Os olhos desertos,
os gestos errados,
os passos incertos,
os sonhos cansados.

Menina perdida,
desaparecida
nos longos caminhos
de pedras e espinhos.
Cabelos molhados,
pés nús, alma exangue,
vestidos rasgados,
mãos frias, em sangue.

Menina encontrada
na berma da estrada.
Andava perdida
mas já foi achada,
de branco vestida,
de branco calçada.

Menina perdida
no bosque da vida.

Fernanda de Castro
Poesia I (1969)
Mulher Perdida
Boneca partida,
que aconteceu
à tua vida?



Ave caída,
ninguém te disse
que é bela a vida?
Quem te mandou,
asa ferida,
brincar com a vida?



E hoje, perdida,
quem te há-de achar?
A morte ou a vida?

Fernanda de Castro
Exílio (1952)
Urgente

Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a peda, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.


É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.


Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.


Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro.
Fernanda de Castro
Poesia II (1969)

«Rua Garrett», dizem as esquinas,
mas que importa o que dizem os letreiros,
Chiado sempre moço das meninas,
dos ourives, dos chás e dos livreiros?


Chiado imenso que em dois palmos cabe,
pedacinho do mundo a palpitar...
Coração da cidade que nem sabe
do que é feito esse encanto singular.


Espelho de mil faces que reflecte
imagens duma raça em movimento...
Corpos vibrando em longo "tête-à-tête"...
Cabeleiras desfeitas pelo vento.


"Vitrine" em que os olhares das mulheres
tomam a forma incerta dum desejo...
De cada montra nascem mil prazeres...
Anda no ar a vibração dum beijo


Ali perto - canteiro da cidade -
A alma dos jardins, cativa, dorme.
Uma rosa desfaz-se em claridade...
Murcham avencas sob um cacto enorme...


Na montra dos brinquedos - um cartaz
para os olhos purinhos dos bebés -
Um palhaço com ar de Ferrabraz
faz as delícias dum menino inglês.


Nos ourives as jóias são punhais.
As pedrarias ferem como balas.
Há fluidos perturbante e sensuais
na morbidez perversa das opalas...


"Rua Garrett", dizem as esquinas,
mas que importa o que dizem os letreiros,
Chiado sempre moço da meninas,
dos ourives, dos chás e dos livreiros?

Fernanda de Castro
in, Lisboa com seus poetas. 1a ed. -Lisboa : Dom Quixote, 2000, p. 94