sexta-feira, 30 de julho de 2010

Reminiscência

"...Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia)
O Senhor Inspector
deu-me a nota mais alta em geografia
e disse gravemente:
- "Continua. Hás-de ser gente..." -


"Ângulo recto, agudo,
cateto, hipotenusa..."
(Já manchara de giz a minha blusa
mas respondia a tudo
e a Professora sorria
enquanto eu papagueava a Geometria)


- "...D.Sancho, o Povoador...
D.Dinis, o Lavrador...
(Tinha então boa memória,
sabia as datas da história...)
1380
1640
1143
em Arcos de Valdevez...
(Muito bem, a pequena é simpática).


- "Vamos lá à gramática." -
"...E, nem, não só, mas também...
conjunções copulativas"
(Eu pensava na alegria
que ia dar a minha mãe,
nas frases admirativas
da velha D.Maria,
a minha primeira mestra:
- Tão novinha e ficou "bem"!" -
e esta suavíssima orquestra
acompanhava, em surdina,
o meu primeiro exame de menina
aplicada, orgulhosa e inteligente...)


- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
fiz os problemas, dividi fracções,
disse as regras das quatro operações
e finalmente
O Senhor Inspector felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara "distinta" sem favor.


Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a claridade
não me cegou.
As estrelas, fitei-as como iguais.
Melhor: como rivais,
e  a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas amigas!)


Pouco depois, em casa,
a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à Terra, ao Céu, ao Mar, ao Rio:
- "O mãe, eu já sei tudo!"
No seu olhar tranquilo, de veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro, cada dia:
"- Ó mãe, eu não sei nada!"
Fernanda de Castro
Trinta e nove poemas (1941)

10 comentários:

Nena disse...

Tenho 52 anos e lembro-me muito bem deste poema no meu livro de leitura, talvez da 4ª classe.

ainda o tentei recitar várias vezes, mas não me lembrava de tudo.

Tenho-o procurado na "net", mas não conseguia. O problema é que não sabia o nome da autora.

Finalmente encontrei!
É a imagem do meu próprio exame de 4ª classe!!!!!!!!!!!

Obrigada.

Tânia Semedo Silva disse...

Este é "O" poema da minha vida :) foi-me apresentado pela minha mãe, fã da Fernanda Castro, que orgulhosamente recebeu das suas mãos um prémio de mérito pelo bom desempenho escolar, em Silves, na década de 60. Foi um prazer encontrar este blogue!

Isabel Moura disse...

Sei de cor este belo poema, que recitei há quase 50 anos, num sarau do liceu,no meu primeiro ano.Nunca o esqueci.Foi bom reencontrá-lo. Obrigada.

Anónimo disse...

Muito obrigado pelos comentários. Um abraço. António

Ana disse...

Sou professora de Português e adoro declamar este poema aos meus alunos, quando estamos a dar a Poesia.

Servi-me sempre de uma cópia feita a partir de um livro que ganhei em criança, intitulado POESIA PARA A INFÂNCIA, uma antologia de Alice Gomes, da Editora Ulisseia, Lisboa 1974.

Hoje lembrei-me de o procurar aqui na Internet e eis que o encontrei. Contudo, reparo numa diferença no segundo verso da primeira estrofe, na palavra geografia, em vez de corografia:
«"...Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia ou corografia)"»

Sendo a corografia o estudo geográfico de um país ou de uma das suas regiões, parece-me muito mais provável que seja esta a palavra certa nesse verso, como o meu livro indica, já que a repetição da palavra geografia (no segundo e no quarto versos) empobrece bastante a estrofe.

Que lhe parece?

Anónimo disse...

Estou perdida de lágrimas!
Acabei uma aula e, sentada em frente do computador, veio-me à memória o verso "Oh mãe, eu não sei nada".
Finalmente, consegui encontrar este magnífico poema que é também o mais marcante da minha infância.
Muitos Parabéns pelo blog!!!

Anónimo disse...

Tenho 53 anos e já por várias vezes que venho aqui ver este poema,não o sei todo de cor mas sei uma boa parte,nunca o consigo terminar sem chorar,lembra-me o meu exame da 4ª classe e revejo-me nele,também eu ainda hoje digo (Oh mãe,eu não sei nada)...apesar dela já não estar entre nós....

Ana Santos disse...

Maravilha ter encontrado este poema q nunca me saiu da cabeça e q me ajudou algumas vezes com as “conjunções copulativas” e com as datas históricas. Acho q estava incluído no meu livro da 4 classe e foi como aquela menina q me senti no meu exame de admissão ao liceu. Espero q saudades não sejam apenas sinónimo de velhice...
Ando tb a procura de um outro texto q me emocionava muito, acho q já no livro de leitura do liceu; tratava-se do enorme amor e cumplicidade entre 2 irmãos. Um deles era cego, e o magnífico texto foi escrito por ele em homenagem ao irmão. Se não me engano, um deles era o João de Deus...

Unknown disse...

A primeira vez que ouvi e li este poema,foi em 1967 quando prestava serviço militar na Guiné e fiz aexame da secção de letras do antigo 5° ano do liceu.Desde então dei voltas e mais voltas para encontrar este "tesouro"e foi quase por acaso,que um dia procurei na net o Poema Português "REMINISCÊNCIA" e o encontrei.Desde então foi lido às minhas filhas e mais tarde aos meus netos,vezes sem conto,porque tive a feliz ideia de o imprimir.

07 de junho de 2021 às 21:26

Anónimo disse...

A primeira vez que ouvi e li este poema,foi em 1967 quando prestava serviço militar na Guiné e fiz aexame da secção de letras do antigo 5° ano do liceu.Desde então dei voltas e mais voltas para encontrar este "tesouro"e foi quase por acaso,que um dia procurei na net o Poema Português "REMINISCÊNCIA" e o encontrei.Desde então foi lido às minhas filhas e mais tarde aos meus netos,vezes sem conto,porque tive a feliz ideia de o imprimir.

07 de junho de 2021 às 21:26